Em frente ao espelho mágico, a bruxa má indaga: "Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?". O que está nas entrelinhas do discurso da antagonista de Branca de Neve tem muito a ver com um complexo conjunto de conceitos que determinam o que se entende como autoestima e o que de fato ela é. Há mais de 10 anos, o psiquiatra e neurocientista Diogo Lara e pesquisadores da PUCRS trabalham em um estudo sobre temperamento e personalidade. Por meio do site temperamento.com.br, foram aplicadas mil perguntas a mais de 100 mil pessoas e constatou-se que somente 25% dos participantes têm uma autoestima essencialmente boa.
Mas, afinal, o que é autoestima boa? É a vaidade da bruxa frente ao espelho? É sentir-se a mais bela entre as belas? Nada disso. Na busca por essas respostas, o psiquiatra mergulhou em conceitos da psicologia e concluiu que ter uma autoestima boa não significa ter o que popularmente se entende por autoestima alta – aquela figura que se acha a mais inteligente, a mais capaz e que, não raro, demonstra atitudes prepotentes.
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– A autoestima não é uma quantidade, é a qualidade da relação que eu tenho comigo mesmo. Ela é vista de maneira maniqueísta, como baixa ou alta somente, e ainda com o equívoco de quanto mais alta, melhor – avalia Lara.
A base da construção desse conceito está relacionada a outro ponto-chave que vem sendo estudado na psicologia: a sensibilidade emocional. Essa "característica psicológica" está relacionada à dificuldade de lidar com críticas, ao abandono, à indiferença e à rejeição, além da forte tendência de se culpar e se cobrar muito.
– A sensibilidade emocional é a porta de entrada para uma série de problemas. E ela, no fim das contas, tem a ver com autoestima – diz.
Psicólogo e analista de comportamento, Enrique Maia explica que a autoestima envolve a integração de um tripé formado por pensamento, sentimento e ação. O primeiro tem a ver com a maneira como a pessoa percebe a si mesma. O segundo com aquilo que ela sente sobre si em suas relações, e o terceiro engloba as ações, tomadas com mais ou menos confiança.
O padrão desse comportamento, reforça Maia, não é uniforme para todas as situações da vida:
– Uma pessoa pode ter um bom conceito sobre si, mas não se sentir confiante em determinadas situações. Por exemplo, posso ter uma pessoa muito autoconfiante no trabalho, mas que se submete a relacionamentos abusivos.
Não seja vítima de si mesmo
A psicologia tem apostado em terapias que tentam reorganizar a autoestima das pessoas, evitando, inclusive, que a falta de um desenvolvimento saudável possa levar a depressão e a outros problemas. No livro Autoestima (edição independente) e no aplicativo Cíngulo, lançados no começo deste ano, Lara aproveita técnicas que conduzem os pacientes a um processamento de memórias, incluindo as traumáticas. Por meio dos personagens, o psiquiatra leva o leitor a lançar mão de ferramentas que lhe permitirão mais autoconhecimento. Não se trata de autoajuda, porque, nesse caso, geralmente são regras determinadas que precisam ser cumpridas.
O autoconhecimento proposto pelo processamento de memórias requer uma viagem interna. Lara esclarece que, no nosso cérebro, a parte mais superficial é o pensamento, onde estão os conceitos e a linguagem. O profundo são as emoções e a sensação corporal. Então, quando se é rejeitado, por exemplo, não adianta simplesmente pensar em algo positivo:
– O pensamento influencia menos as emoções do que gostaríamos de admitir. Se você não passa por uma experiência de modificação, não modifica. A proposta dessas terapias é mostrar que nós não precisamos ser reféns das nossas memórias. As pessoas não precisam mais ser vítimas de si mesmas.
Os quatro tipos de autoestima
Por meio da pesquisa comandada pelo psiquiatra Diogo Lara, da PUCRS, definiu-se quatro tipos de autoestima:
Baixa
Está identificada com a pessoa que entende que tem pouco valor no mundo e que suas conquistas são fruto mais da sorte do que de sua capacidade. Impotência e tristeza são sentimentos básicos nesse perfil.
Alta
A autoestima alta está relacionada a uma postura de se entender superior, acima do bem e do mal, com mais direitos do que os outros. Narcisismo e raiva são muito presentes.
– A autoestima alta demais tem a ver com a necessidade de se afirmar e, às vezes, de colocar os outros para baixo. Isso gera problemas. Uma das coisas que se trabalha muito em liderança é deixar de ser assim, esse líder autoritário, prepotente, arrogante para ser mais humano e transparente – afirma Lara.
Frágil
É onde boa parte das pessoas se encontra. Nela, há sensibilidade emocional a críticas, rejeição, indiferença, inclinação a se culpar e se cobrar demais e a necessidade de agradar. Há o culto de uma persona, de uma imagem, de alguém que não se é realmente.
– Aí, vem todo esse fenômeno do Facebook. Quem posta o dia todo precisa do retorno dos outros para se sentir com valor. Isso não é autoestima, é falta de autoestima, o que é diferente de autoestima baixa. A pessoa com autoestima baixa está mais fechada, não quer conversa, mas a de autoestima frágil, que não está tranquila com ela mesma, precisa dessa aprovação externa. Se eu não me considero com valor, preciso que as pessoas me digam que tenho valor. Existe alguma coisa no brasileiro que faz com que sejamos os campeões de Facebook. Claro, tem o lado da nossa extroversão, que contribui para isso também, mas olhando os perfis, a gente vê que as pessoas se sentem oprimidas com essa felicidade artificial exibida nas redes. E as pessoas sensíveis ficam mais sensibilizadas com isso porque se comparam – conclui Lara.
Equilibrada
O panorama considerado saudável quando se fala em autoestima está associado a autoaceitação, autoeficácia, autenticidade, autoempatia, autorrespeito e, principalmente, autoconhecimento. Todos esses aspectos norteiam o que os especialistas entendem por uma autoestima equilibrada. Essas pessoas conseguem manter uma boa relação consigo mesmas, não buscam a perfeição e não querem ser mais do que os outros. Elas reconhecem suas qualidades, mas não se exaltam com elas e ainda não negam seus defeitos, trabalhando com eles dentro do possível.
– Para eu me definir, preciso ter coragem de fazer uma "discussão de relação" interna, saber quais são meus defeitos e minhas qualidades. É sair de um modo de autoproteção, em que está a maioria das pessoas, tentando cultivar uma imagem para que os outros digam que ela tem valor – diz o neurocientista.
Impacto nos relacionamentos amorosos
A saúde da autoestima pode ser determinante nos relacionamentos amorosos. A frase "é preciso amar-se para poder amar" dá indícios de que a sabedoria popular resumiu a importância de estar bem consigo para compartilhar a vida com outra pessoa e de forma agradável para ambos. Quando há desequilíbrio nesse processo de autoconhecimento e aceitação em uma das pontas do casal, a tendência é de que a relação não se sustente por muito tempo ou se torne um martírio para os envolvidos.
Há mais de 15 anos acompanhando casais em seu consultório, o médico psiquiatra e sexólogo Lincoln Cesar Andrade observa alguns comportamentos recorrentes nas pessoas que têm a autoestima desequilibrada ou frágil quando se relacionam. Um deles é a postura servil frente ao companheiro, com uma preocupação constante em agradá-lo e disponibilidade extrema para ajudar, estabelecendo um padrão de dependência afetiva.
– Nota-se que essa pessoa sente necessidade do outro em nível exagerado e está sempre se queixando que tenta agradar e não vê um retorno à altura – diz Andrade.
Engana-se quem pensa que a postura dominadora está confortável quanto a conceitos de autoaceitação e autoconhecimento. O ciúme exagerado, a mania de controlar tudo a sua volta, a cobrança constante do parceiro e a dificuldade de se ajustar e aceitar posições contrárias, por exemplo, também demonstram desequilíbrio na autoestima. Manter o outro sob uma dominação constante é um grande sinal de insegurança pessoal que acaba contaminando a convivência do casal. O psiquiatra nota que, via de regra, pessoas com autoestima saudável buscam relacionamentos com pessoas na mesma condição. Assim, juntos, estabelecem uma parceria promissora, em que realmente se ajudam e crescem juntos, sem que um oprima o outro.
– Quanto mais sadia nesse aspecto, mais a pessoa busca seu crescimento e o crescimento do parceiro. Ela age com confiança, sem se sentir ameaçada pelo meio social. Já o patológico tende a se aproximar do patológico, até porque a pessoa com autoestima saudável percebe o desequilíbrio do outro e cai fora, não aguenta. Tem de analisar se o individual não está bagunçado, antes de ver o casal – analisa.
Os alicerces familiares da autoestima
O psiquiatra Lincoln Andrade atenta para a repetição de padrões de relacionamentos. A pessoa sai de uma relação conturbada, mas acaba entrando em outra com níveis de neurose e desarmonia semelhantes. Em uma avaliação mais detalhada para justificar essa conduta, ele observa o papel fundamental da família na construção dessa autoestima vulnerável, desde a primeira infância até a fase adulta.
A mãe, na troca afetiva com o bebê, já começa a formatar esse sentimento de valorização pessoal no filho. Dar atenção à criança e valorizar suas conquistas são atitudes que ajudam a organizá-la psicologicamente. Quando a criança é só cobrada, desestimulada a enfrentar seus desafios e oprimida, ela perde as ferramentas da autoconfiança. Na adolescência, isso pode se agravar diante do apelo da atratividade dessa fase da vida e de todas as dúvidas e transformações físicas e psicológicas que essa etapa implica.
– Então, ela cresce com a sensação de baixo valor pessoal – reforça Andrade.
O psicólogo e analista de comportamento Enrique Maia alerta que a reprodução de padrões de comportamento também se estabelece nesse contato familiar. Pais com autoestima frágil ampliam as chances de terem filhos com o mesmo problema.
– Às vezes, até o modelo de marido e mulher que encontram nos pais é reproduzido nos relacionamentos amorosos da vida adulta – explica.
Quando se fala em valorizar as conquistas dos filhos, isso não significa apelar para a bajulação e estimular a falsa autoestima, associada a um comportamento arrogante e intransigente. O psiquiatra alerta que esse tipo de comportamento também causa distorções na autoestima. Não é achar tudo o que a criança faz, inclusive grosserias, maravilhoso e digno de elogios, mas exercer o que ele chama de "função espelho": se a criança traz um sorriso, ela merece ser acolhida com o mesmo gesto, não com indiferença.
– Claro, não estamos falando de uma situação que ocorre vez ou outra. Mas se isso (a indiferença) é repetitivo, a criança terá a sensação de que o meio não reflete nada de bom. É preciso adequação e bom senso – pondera.
O psiquiatra Diogo Lara explica que, desde cedo, os pais atrelam aos filhos a ideia de que o valor pessoal de cada um tem a ver com as conquistas, a popularidade e com a forma como as pessoas os veem. Frases como "é feio fazer isso", "sua prima não faz isso", "seu primo conseguiu aquilo" enriquecem a cultura de colocar nas mãos dos outros o próprio valor.
– Vem da família nos comparar, e isso é algo que dói muito para a criança. São as grandes armadilhas a que a gente é exposto desde criança, mas nessa fase não temos nenhuma defesa. Então, vamos construindo um falso self, uma autoestima que é dependente do externo, e isso enfraquece a minha relação comigo mesmo. Como as questões de autoestima vêm da nossa história, qualquer ofensa, principalmente dos pais, mas também bullying, pode bater muito forte na nossa autoestima – ressalta Lara.