Brasileiros com doenças hereditárias da retina terão acesso a partir da próxima semana a um mapeamento genético gratuito, que fornecerá informações sobre a mutação causadora do mal e as perspectivas para sua evolução.
O projeto é bancado pelo laboratório norte-americano Spark, que atua no desenvolvimento de terapias gênicas, e funcionará com o apoio de quatro centros de referência espalhados pelo país, um deles em Porto Alegre. Qualquer oftalmologista pode entrar em contato com essas unidades e verificar se o seu paciente está apto a fazer o teste, realizado com uma amostra de saliva.
O exame permite identificar alterações em um conjunto de 226 genes associados a doenças da retina, que, em muitos casos, levam à perda progressiva da visão e à cegueira. É um tipo de diagnóstico que hoje está disponível para pouquíssimas pessoas e a um custo elevado – de no mínimo R$ 5 mil em laboratórios privados.
A novidade, divulgada nesta semana durante o Congresso da Sociedade Brasileira de Retina e Vítreo, no Rio de Janeiro, é comemorada por especialistas e pacientes. Mesmo que não exista nenhum tratamento disponível para as doenças abrangidas, eles consideram fundamental ter um diagnóstico preciso, que só os testes genéticos podem oferecer. Maria Julia Araújo, 60 anos, presidente da associação de pacientes Retina Brasil, conta que, desde os 14 anos, sofre de retinose pigmentar, mas apenas passou a sofrer perdas significativas da visão depois dos 55 anos.
– Fiquei minha vida toda sofrendo, porque não sabia exatamente quando perderia a visão. Convivi sempre com esse fantasma. Se tivesse feito um teste genético, saberia que a evolução da minha doença seria lenta. O teste permite planejar melhor a vida – afirma.
A oftalmologista Rosane Resende, do Instituto de Olhos Carioca, um dos quatro centros de referência, conta o caso de uma mulher que vinha percorrendo médicos havia quatro anos, em busca de um diagnóstico para o que estava afetando a visão do filho de sete anos. O teste genético revelou que o menino tinha um tipo de distrofia da retina que conduziria à cegueira. Rosane comunicou o resultado esperando que a mãe reagisse mal, mas deu-se o oposto: ela sentiu-se aliviada e agradeceu.
– Eu jurava que aquela mãe ia sofrer quando eu falasse. Estava preparada para consolá-la. Mas ela não ficou triste. Ela disse: "Por pior que seja o diagnóstico, não é tão ruim como não saber o que meu filho tem. Agora que sei, posso programar a vida dele, posso ajudá-lo melhor". Com o teste, o paciente passa a ter um diagnóstico de certeza. E o médico pode manejar melhor a doença – afirma Rosane.
Estima-se que existam cerca de 2,1 milhões de pessoas com doenças hereditárias da retina no mundo. Não há dados para o Brasil, mas apenas a associação Retina Brasil conta com 4,5 mil cadastrados. Esses pacientes sofrem de uma gama variada de doenças, e cada uma delas pode se apresentar com características bastante distintas, de acordo com os genes causadores.
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O mapeamento oferecido de forma gratuita pela Spark tem como objetivo justamente conhecer melhor essas características e as prevalências, com vistas ao desenvolvimento de terapias – o laboratório terá acesso aos dados populacionais obtidos durante o estudo. O Brasil é o segundo país, depois dos Estados Unidos, a receber o projeto. Na sequência, Europa e Argentina serão incluídas. A Spark não informou por quanto tempo vai oferecer os testes gratuitos ou se tem alguma meta de pacientes a atingir.
– A Spark é uma empresa voltada para o desenvolvimento de terapias gênicas. Entender os dados populacionais, de incidência, ajudam a ciência. Estamos falando de doenças raras, em que existe grande escassez de informação – afirma Paulo Fallabela, especialista em retina e diretor-médico do laboratório.
O primeiro gene relacionado a distrofias da retina foi identificado em 1984. Desde então, descobriram-se mais de duas centenas deles. Tais genes são responsáveis por codificar as mais de 280 proteínas presentes na retina. Caso sofram alguma mutação, a proteína é alterada, causando degeneração. Como a retina é responsável por captar a luz e transformá-la em um estímulo elétrico enviado ao cérebro, seu desgaste leva a perda progressiva da visão.
Ainda não há tratamento, mas estão em andamento vários protocolos de pesquisa que podem resultar em terapias no futuro. O mapeamento genético dos pacientes é importante também para identificar quem pode participar de cada um desses protocolos.
– Algumas pesquisas estão muito perto de se transformar em tratamento clínico – afirma Juliana Sallum, do Instituto de Genética Ocular de São Paulo.
Presença de centro de referência em Porto Alegre pode ajudar a traçar perfil genético do RS
A clínica Vista Oftalmologia, de Porto Alegre, está entre as quatro instituições selecionadas para operar como centros de referência no projeto de mapeamento genético das doenças hereditárias da retina no Brasil. Os quatro locais foram escolhidos por contar com especialistas renomados – no caso da Vista, o retinólogo Felipe Mallmann. Os outros centros de referência ficam em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
Mallmann acredita que será procurado principalmente por oftalmologistas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, interessados em realizar as testagens em seus pacientes. Ele considera importante que Porto Alegre tenha sido incluída no projeto:
– Ser comtemplado significa que vamos poder saber quais as variantes genéticas mais comuns no Estado. Hoje temos muito poucos dados sobre esse perfil genético. Com isso, vamos ser capazes de orientar melhor os pacientes.
O papel dos centros de referência consiste em analisar os casos submetidos pelos oftalmologistas, verificando se eles são elegíveis para o teste genético. Em caso afirmativo, liberam o kit de coleta que foi desenvolvido pelo laboratório Mendelics Análise Genômica, de São Paulo. A particularidade desse kit é permitir um mapeamento a partir de uma quantidade muito pequena de DNA, retirada da saliva do paciente.
O kit é enviado pelo correio ao oftalmologista, que retira a amostra de saliva esfregando uma espécie de cotonete na parte interna da boca do paciente. Depois, encaminha o material, também pelo correio, para o Mendelics, que faz a análise e fornece o resultado, por meio de um aplicativo, no prazo de 30 dias a seis semanas. O custo normal desse teste seria de R$ 3,9 mil.
– Nossa missão é tornar o diagnóstico genético acessível, rápido e preciso para todo mundo que necessita. Diagnosticamos entre 70% e 80% dos casos. Restam pacientes com mutações que a gente não consegue mapear ou com mutações que ainda não foram descobertas – diz David Schlesinger, fundador da Mendelics.
COMO FUCIONA
Elegibilidade - Pacientes com diagnóstico ou suspeita de doença hereditária da retina poderão realizar o teste genético gratuito, desde que sejam considerados elegíveis. Para se credenciar, o oftalmologista deverá entrar em contato por telefone com um dos centros de referência do projeto.
Centros de referência - Foram escolhidas quatro clínicas, localizadas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. Esses centros vão analisar cada caso encaminhado pelos oftalmologistas do Brasil inteiro, para verificar se são mesmo situações de doença hereditária da retina.
Coleta de material - Se o paciente se credencia a fazer o teste, um kit de coleta é enviado ao oftalmologista. Com um esfregaço na boca do paciente, o profissional retira por meio de uma espécie de cotonete uma amostra de saliva.
Análise -O material coletado é enviado para o laboratório Mendelics, de São Paulo, que desenvolveu o teste. São analisados 226 genes que estão relacionados a doenças hereditárias da retina.
Resultado - Depois de um período de 30 dias a seis semanas, o resultado é disponibilizado ao oftalmologista por meio de um aplicativo. Esse resultado informa se realmente é um caso genético, qual o gene causador e quais as características específicas da doença, permitindo uma melhor orientação ao paciente.
Mapeamento genético - A ideia é que o conjunto de dados permita fazer um mapeamento dos genes envolvidos nas doenças – uma espécie de perfil genético da população. Os dados populacionais – mas não os individuais – ficarão disponíveis para o Spark, laboratório que vai custear os exames.
OS NÚMEROS
– 6,7 milhões de pessoas têm alguma forma de deficiência visual no Brasil, incluindo 547 mil cegos
– No caso das doenças hereditárias da retina, um grupo heterogêneo de doenças oculares raras causadas por mutações genéticas, não há uma estimativa nacional. Em geral, a incidência é de um caso para cada 3,5 mil pessoas a 4 mil pessoas.
AS DOENÇAS MAIS COMUNS
Amaurose Congênita de Leber – Doença generativa da retina caracterizada pela perda grave de visão desde o nascimento. Tem mais de 17 genes envolvidos e é uma das causas de cegueira na infância.
Retinose pigmentar – Grupo de doenças degenerativas da retina, envolve dezenas de genes e provoca dificuldades de visão progressiva.
Coroideremia – Afeta um em cada 50 mil homens, começando com cegueira noturna na infância, seguida pela perda de visão periférica. Mais tarde, progride para perda da visão central.
*O repórter viajou ao Rio de Janeiro a convite da Spark Therapeutics