Renomado psiquiatra da atualidade, o norte-americano Allen Frances se tornou um dos maiores críticos do que ele define como "inflação de diagnósticos".
Autor do livro Voltando ao normal, que está sendo lançado no Brasil pela Versal Editores, Frances questiona os critérios definidos pela quinta edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5), publicado pela Associação Americana de Psiquiatria em 2013, e que trouxe uma ampliação do número de transtornos.
Leia também:
Afinal, qual é a fronteira que separa um problema comum da vida de um transtorno mental?
Na avaliação de Frances, que liderou a equipe que elaborou a edição anterior, de 1994, a profusão de enquadramentos difusos estaria levando até pessoas normais a serem medicadas, um cenário estimulado pela indústria farmacêutica. "Estamos nos tornando uma população de viciados em comprimidos", alerta, no livro.
Na publicação, ele afirma ainda que "80% das prescrições são dadas por clínicos gerais com pouco treinamento em seu uso adequado, sob pressão intensa de vendedores ou de pacientes mal informados, depois de apressadas consultas de sete minutos, sem exames sistemáticos".
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele avalia os riscos desse quadro, que define como a "verdadeira loucura".
O senhor diz que alguns comportamentos normais têm sido definidos como doença mental. Como chegamos a esse ponto?
A fronteira entre uma angústia normal e um transtorno psiquiátrico é muito difusa e altamente povoada. Pequenas mudanças nas definições de transtornos, e suas aplicações, podem rotular novamente milhões de transtornos, bem como doenças mentais. As empresas farmacêuticas, de forma agressiva e enganosa, vendem doenças psiquiátricas para vender seus remédios. Aflição normal é uma parte da vida e não deve ser falsamente rotulada como transtorno mental.
O senhor é um crítico do DSM-5. Quais os principais erros, na sua opinião? E quais as consequências?
As definições de transtorno mental do DSM-5 são frouxas demais, e as empresas de medicamentos exploram isso para vender pílulas e obter lucro. No DSM-5, imaturidade normal se torna transtorno de déficit de atenção. Uma angústia normal se torna distúrbio depressivo maior. Um esquecimento normal da idade se torna transtorno neurocognitivo leve. Comer demais se torna compulsão alimentar. Temperamento instável se torna transtorno disruptivo de desregulação do humor. Sintomas clínicos se tornam transtorno somatoforme. As consequências do hiperdiagnóstico são excesso de tratamentos inúteis, remédios potencialmente prejudiciais e estigma.
Como diferenciar a nova definição de transtorno de compulsão alimentar de simplesmente comer demais às vezes?
Eu acho que foi um grande erro incluir essa compulsão alimentar periódica no DSM-5 porque essa distinção não vai ser possível. Uma empresa farmacêutica nos Estados Unidos já está empurrando este transtorno falso na TV com endossos de um ex-campeão de tênis. A solução sugerida, a pílula de dieta, não vai funcionar e engana o público.
Nos últimos anos, temos visto uma proliferação de diagnósticos de déficit de atenção e hiperatividade entre crianças. Elas estão mais propensas a sofrer distúrbios mentais do que antigamente ou esse é um outro exemplo de erro de diagnóstico?
Estudos em milhões de crianças em quatro diferentes países mostram que a maior propensão de ter diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade está na sua data de nascimento: crianças mais jovens da classe, que são naturalmente mais imaturas, têm duas vezes mais chances de ganhar o rótulo do que as mais velhas. As empresas farmacêuticas têm persuadido médicos, pais e professores a transformar imaturidade em uma doença e tratá-la com comprimidos. Isso é loucura.
Quem é responsável por este cenário?
A definição de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade é muito abrangente, e empresas farmacêuticas têm se aproveitado disso.
Como pacientes e familiares podem se proteger?
Eles devem ser informados do risco do excesso de diagnósticos. Não aceitar o diagnóstico ou um comprimido depois de uma rápida visita ao médico. As crianças são mais difíceis de serem diagnosticadas, e avaliações devem ser aprofundadas e ponderadas depois de semanas ou meses antes de qualquer decisão por medicação.
Existe estimativa sobre a proporção de erros de diagnóstico no mundo?
Nós provavelmente hiperdiagnosticamos cerca de dois terços das pessoas com sofrimentos normais, que poderiam estar melhores se não fossem tratadas, e muitas vezes deixamos de diagnosticar e tratar muitos desses distúrbios severos de pessoas que precisam desesperadamente de ajuda. O cruel paradoxo é, essencialmente, que muitas pessoas normais que não precisam de medicamento estão sendo medicadas, enquanto negligenciamos as pessoas com doença mental grave, que frequentemente não recebem nenhum tipo de tratamento.
O que significa ser normal?
Não há nenhuma definição precisa do "normal" para separar quem é saudável e doente. Dor emocional e ansiedade são parte da vida e só devem ser diagnosticadas como transtorno mental se forem persistentes, graves e desproporcionais diante das circunstâncias da vida.