O atentado que deixou 50 mortos e 53 feridos em uma boate gay da Flórida (EUA) teve entre seus desdobramentos dar visibilidade a uma bandeira levantada por movimentos LGBT do mundo todo, inclusive no Brasil: a mobilização contra regulações que dificultam ou impedem a doação de sangue por homossexuais.
Confrontados com dezenas de vítimas à espera de uma transfusão nos hospitais, gays expressaram angústia e raiva diante da situação de querer ajudar e não poder, porque a lei norte-americana veta doações de homens que fizeram sexo com outros homens nos 12 meses anteriores. "Recusar-se a aceitar o sangue de um homossexual, mesmo precisando dele para salvar a vida de outro homossexual, é acrescentar insulto à injúria", postou, no Twitter, uma das milhares de pessoas que se indignaram.
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No Brasil, que adota regulação similar à dos Estados Unidos, há uma perspectiva real de mudança. Na semana passada, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin decidiu apressar a tramitação de uma ação que suspende a regra segundo a qual homens gays que tenham feito sexo nos últimos 12 meses ficam proibidos de doar sangue. Pela decisão de Fachin, o Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária receberam 10 dias para prestar informações sobre a regulamentação atual.
No despacho, Fachin afirmou que "muito sangue tem sido derramado em nosso país em nome de preconceitos que não se sustentam, a impor a célere e definitiva análise da questão por esta Suprema Corte". Com a decisão do ministro, o plenário do STF vai pronunciar-se sobre o caso de forma definitiva. A ação que questiona as restrições atuais para a doação por parte dos gays foi apresentada por advogados do PSB.
Grupos de defesa dos direitos da comunidade LGBT entendem que o regramento brasileiro é discriminatório, ao criar uma empecilho que vale apenas para os gays, e que, na prática, impediria os homossexuais de doar sangue. Para que eles se credenciassem, teriam de optar pela abstinência sexual.
Para ativistas, regras são preconceituosas
– Houve um jogo de cena por parte da Anvisa. Antes, era totalmente proibida a doação por homossexuais. Protestamos. Aí mudaram para a regra dos 12 meses, o que dá na mesma. O país trocou um absurdo por outro. Se eu transo, não posso doar. Enquanto isso, os bancos de sangue operam abaixo do mínimo. Falta sangue e não querem sangue – lamenta o jornalista Welton Trindade, do grupo LGBT Estruturação.
Há seis anos, o Estruturação encabeçou a campanha "Mesmo Sangue, Mesmo Direito", que exigia igualdade de critérios a todos os doadores. O entendimento do grupo é de que as regras que barram gays têm como base o preconceito, e não dados técnicos.
– Se precisam discriminar para ter segurança sobre o sangue doado, então estão desconfiando dos seus próprios métodos de triagem. Triagem é avaliar: fez sexo sem proteção? Se fez, não pode doar. Não interessa a orientação sexual. Hoje, um hétero pode sair do motel e ir direto doar sangue. O homossexual precisa ficar um ano sem fazer sexo – critica Trindade.
Claudia Penalvo, do grupo Somos, diz que hoje há tecnologias que permitem avaliar se um doador é portador do HIV, por exemplo, o que tornaria a norma dos 12 meses desnecessária.
– A regra atual é preconceituosa, porque a pessoa pode ser um homossexual masculino e usar preservativo sempre ou pode ser um heterossexual e não usar camisinha nunca. Não é a prática sexual dele que importa, é se ele se cuida – defende.
Apesar da oposição dos grupos gays, a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular apoia a atual restrição aos homossexuais masculinos e entende que um relaxamento das regras aumentaria a insegurança do sangue coletado. Integrante da direção da entidade, a hematologista Júnia Mourão Cioffi sustenta que a exclusão dos homossexuais não é motivada por preconceito:
– Todas as exclusões são baseadas em dados epidemiológicos, em situações que podem aumentar o risco para determinadas patologias. A inaptidão principal é pelo ato sexual anal, que aumenta o risco de transmissão de doenças sexualmente transmissíveis. Não é por causa de orientação sexual.
Críticos desse posicionamento lembram que a janela imunológica do HIV – o período a partir da infecção durante o qual o vírus não é detectável – é de quatro semanas, o que seria contraditório com os 12 meses de abstinência exigidos dos homossexuais. Júnia afirma que o prazo está relacionado a outros vírus, como o da Hepatite C.
– Doze meses é o período de segurança – completa.
Norma é justificada por estatísticas, diz Anvisa
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Ministério da Saúde responderam por meio de notas aos pedidos de esclarecimento encaminhados por ZH e reafirmaram a posição de excluir do rol de doadores os homens que fizeram sexo com outros homens nos 12 meses anteriores.
No texto enviado, a Anvisa observa que os critérios de inaptidão das normativas brasileiras estão associados a diferentes práticas e situações de risco e não se restringem apenas a homens que fizeram sexo com outros homens. Conforme a agência, os critérios não têm relação com orientação sexual, mas estariam fundamentados "em evidências epidemiológicas e técnico-científicas visando o interesse coletivo na garantia máxima da qualidade e segurança".
Para amparar sua posição, a Anvisa cita documentos da Organização Mundial da Saúde (OMS) segundo os quais a prática de sexo entre homens aumenta em 19,3 vezes a probabilidade de infecção por HIV, na comparação com homens na população em geral. De acordo com as estatísticas citadas pela Anvisa, de 0,4% a 0,7% dos brasileiros vivem com HIV. Entre homens que fazem sexo com homens, o índice sobe para 10,5%.
O Ministério da Saúde, em sua resposta, afirma "que os critérios para a seleção de doadores de sangue estão baseados na proteção dos receptores, visando evitar o risco aumentado para a transmissão de doenças", e lembrou que na maior parte dos países europeus homens que tiveram relações com outros homens são considerados inaptos a doar sangue de forma permanente.