O primeiro sinal a chamar atenção em Isadora foi o crescimento de uma das mamas. Na sequência, a médica pediu um exame de imagem e constatou que a menina também apresentava vários folículos ovarianos, algo que costuma aparecer no começo do processo de amadurecimento sexual. Seguiram-se dosagens hormonais e uma ressonância magnética do cérebro.
Depois de alguns meses, veio a constatação: Isadora era um caso de puberdade precoce.Com o diagnóstico redesenhou-se também a compreensão sobre o recente comportamento irritadiço da menina de Porto Alegre. Não era birra de criança. Eram as mudanças de humor que costumam ser causadas pelo jorro de hormônios nos inícios da adolescência. O que talvez surpreenda é a idade de Isadora à época: menos de dois anos.
– A endocrinologista disse que ela poderia ter a primeira menstruação aos cinco anos. Ficamos muito assustados – relata a mãe, a fisioterapeuta Betania Hansel.
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Pouco mais de um século e meio atrás, as meninas tinham a sua primeira menstruação, conhecida como menarca, com uma média de 17 anos. A idade foi caindo com o passar do tempo e, hoje, está na faixa dos 12 anos. Quando ocorre a menstruação, isso quer dizer que a garota está na fase final da puberdade, um período de mudanças físicas, hormonais e emocionais que dura de um ano e quatro meses até dois anos e oito meses, em média.
Atualmente, os manuais médicos estabelecem como dentro da normalidade o começo da puberdade a partir dos oito anos nas meninas e dos nove anos nos meninos. Nelas, o marco inicial costuma ser o surgimento das mamas. Neles, o crescimento dos testículos. Há indícios de que são cada vez mais numerosos os casos em que a largada para o processo de amadurecimento se dá antes da idade considerada adequada, ainda que os dados não sejam muito precisos. Estudos norte-americanos apontam dados que podem ir de uma ocorrência para cada 5 mil até uma para cada 10 mil garotas. Na Dinamarca, a prevalência seria de um caso por grupo de 500 meninas. Entre os garotos, a situação é bem menos frequente.
– Não é necessariamente uma doença. Para considerar que é uma doença ou não, vai depender de uma série de fatores. O que se sabe é que tem diminuído a idade do surgimento da puberdade e também a idade da primeira menstruação nas últimas décadas. Já vi casos de crianças com até dois anos, às vezes com menstruação e tudo, com puberdade avançada, mama grande. Em meninos também pode ocorrer nessa faixa etária. Pode ser um bebê de fralda com pelos, com pênis grande, com aumento de volume testicular – observa a endocrinologista pediátrica Leila Pedroso de Paula, do Hospital de Clínicas.
Mudanças físicas e comportamentais
Segundo Leila, muitas vezes o crescimento da mama antes dos oito anos ou dos testículos antes dos nove é apenas uma variação dentro da normalidade e não requer maiores cuidados. Em outros casos, no entanto, entra na classificação de puberdade precoce – e requer atenção, primeiro porque pode ser causada por alguma condição séria de saúde, mas também porque pode trazer complicações no futuro. A mais notável é a baixa estatura, mas há trabalhos apontando para outros problemas.
De acordo com artigo publicado na revista médica The Lancet pelos brasileiros Ana Claudia Latronico, Vinicius Nahime Brito e pelo francês Jean-Claude Carel, a puberdade precoce também estaria associada a risco maior de obesidade, hipertensão, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, acidente vascular cerebral e certos tipos de câncer – o que é atribuído à exposição precoce ao hormônio estrógeno. O trabalho dos brasileiros cita ainda evidências segundo as quais crianças com puberdade precoce teriam mais probabilidade de apresentar distúrbios psicológicos e também “comportamentos delinquentes” na idade adulta.
Outra preocupação diz respeito a problemas psicossociais. As mudanças físicas em uma criança ainda pequena podem gerar constrangimento em ambientes como a escola. E os efeitos dos hormônios tendem a ser devastadores no campo emocional.
– A presença dos hormônios, principalmente dos masculinos, tanto no homem como na mulher, dá aquele aspecto de irritabilidade, de agressividade. Isso vindo precocemente, a criança não sabe como lidar. Se já é difícil para um adolescente com a idade normal, imagina para uma criança. Já o constrangimento se dá pela transformação do corpo antes do momento adequado. Sem falar que uma menina de oito anos que já menstrua sequer tem a maturidade para todos os cuidados de higiene que isso acarreta – observa Marcia.
Uma dificuldade é que, com frequência, os pais não percebem que algo de anormal está acontecendo ou não têm conhecimento para fazer uma avaliação. Leila conta que já atendeu uma família que a procurou porque a filha de quatro anos estava sem menstruar havia alguns meses – como se a cessão da menstruação é que fosse o problema. É importante saber que, quando se procura ajuda, há um tratamento muito eficaz à disposição. No caso da puberdade precoce clássica, ele consiste em injeções, normalmente mensais, que fazem o processo regredir. É a esse tratamento que Isadora, agora com quatro anos e 10 meses, está sendo submetida há um ano.
– Até hoje, alguns dias antes de fazer uma nova medicação, ela fica mais irritada, porque já está com baixa hormonal. Não é nada mais, nada menos, do que uma TPM que ela tem. Mas a taxa de hormônio estabilizou, os folículos reduziram e a mama retrocedeu totalmente – conta a mãe.
A expectativa é de que Isadora prossiga no tratamento até por volta dos 11 anos. Então, as injeções serão suspensas. E seu corpo será liberado para desenvolver-se – desta vez, na hora certa.
Causas desconhecidas (e repletas de conjecturas)
Em algumas situações, a ciência consegue determinar o que provocou a puberdade precoce, mas na maioria dos casos trata-se de um mistério – e um campo fértil para conjecturas. Entre as meninas, a causa é desconhecida em até 95% das ocorrências. Entre os meninos, nos quais o fenômeno é bem mais raro, o índice fica em torno dos 50%.
Os episódios em que a origem é identificada podem ter relação com a presença de tumores (benignos ou malignos) ou doenças (hiperplasia adrenal congênita, por exemplo) que ativam a produção de determinados hormônios antes do tempo. Nesses casos, a prioridade é combater a causa.
Quando nenhuma motivação é identificada, diz-se que a puberdade precoce é idiopática. Marcia Puñales, supervisora do programa de residência em endocrinologia pediátrica do Hospital da Criança Conceição, observa que é como se tivéssemos uma espécie de relógio dormente na hipófise, uma glândula situada na base do cérebro (leia mais ao lado). Em determinado momento da vida, não se sabe exatamente por que, esse relógio é ativado. A partir desse instante, a hipófise passa a liberar no sangue, em picos, os hormônios LH e FSH. Esses hormônios, por sua vez, estimulam as gônadas (o ovário nas meninas e os testículos nos meninos), levando a produção de testosterona e estrógeno – as substâncias que fazem crescer as mamas e os testículos. Esse é o processo que desencadeia a fase de amadurecimento sexual.
– Junto a esses hormônios, a suprarenal começa a produzir o que a gente chama de hormônios andrógenos, masculinos, que tanto o homem como a mulher têm. São esses hormônios que vão causar a presença do pelo pubiano, do odor axilar e da oleosidade da pele – observa Marcia.
Ocorre que, em certos casos, o relógio dispara mais cedo. Sabe-se que o começo da puberdade pode ser influenciado por fatores genéticos, psicológicos e ambientais. Entre esses últimos, estão as condições socioeconômicas, o estado de saúde, a nutrição e mesmo a altitude. A raça também tem peso: meninas negras entram na puberdade mais cedo do que as brancas. Além disso, está documentado que a puberdade tende a vir mais cedo em meninas cujas mães menstruaram com menor idade, que tinham baixo peso ao nascer ou que sofreram de obesidade na infância.
Tema ainda tem poucos estudos
Mas a razão para os casos de precocidade, para aquelas situações em que o relógio parece disparar antes do que seria adequado, não é tão clara. Uma das hipóteses, explica Marcia, diz respeito ao contato com os chamados desreguladores endócrinos, substâncias com capacidade para alterar o funcionamento do sistema endócrino-hormonal.
– Mas há poucos estudos sobre isso, e ninguém sabe exatamente o que está causando a puberdade precoce – afirma a especialista.
Um dos desreguladores suspeitos é o chamado bisfenol, presente em alguns plásticos e embalagens. Em 2011, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu a presença da substância nas mamadeiras, pelo risco que representaria para as crianças. Também há desreguladores na soja, mas o entendimento é que seria necessário o consumo de uma grande quantidade da oleaginosa para que um efeito negativo pudesse ser provocado.
– No Brasil, isso não é levado tão a sério, mas há países em que uma série de substâncias estão proibidas. Vários não permitem o bisfenol em todos os plásticos e brinquedos, enquanto aqui aparece em muitos produtos, como a parte interna de algumas latas de refrigerante e de outras embalagens. Também se acredita que a precocidade possa estar relacionada a hormônios presentes no frango ou em substâncias parecidas com o estrógeno existentes em pesticidas agrícolas – afirma a endocrinologista pediátrica Leila Pedroso de Paula.
Estatura baixa é principal consequência
Um dito bastante conhecido entre as mulheres dá conta de que, depois da primeira menstruação, não se cresce mais. Não é exatamente assim, mas há uma certa dose de verdade na afirmação. O aumento de estatura está relacionado fortemente ao processo de amadurecimento sexual. Quando este ocorre, meninos e meninos ainda crescem uns poucos centímetros – e era isso. Essa é uma das principais razões para que a puberdade precoce gere preocupação – quando essa etapa é vivida cedo demais, deixa-se de crescer com pouca idade. O resultado final são pessoas de estatura muito baixa.
– Antigamente não se tratava a puberdade precoce. As pessoas ficavam baixas e nem sabiam por quê – lembra a endocrinologista pediátrica Marcia Puñales.
As pessoas crescem a partir de uma parte dos ossos chamada de cartilagem do crescimento. Durante a puberdade ocorre a liberação, tanto em meninos como em meninas, de um hormônio feminino chamado estrógeno. Esse hormônio está ligado ao processo de maturação sexual – mas ele também atua no osso, provocando o “fechamento” da cartilagem. É uma espécie de sinalizador para que o corpo pare de crescer.
– O principal acelerador da maturação óssea é o hormônio feminino. Então, o que acontece se as características sexuais se completam precocemente, é que o crescimento ósseo fecha antes. A estatura fica abaixo do alvo genético – diz Marcia.
A endocrinologista Leila Pedroso de Paula explica que, ao contrário do que se pensa, não se cresce de acordo com a idade cronológica, mas sim conforme a idade óssea. Normalmente, uma menina vai crescer bem até atingir 13 anos de idade óssea. No caso dos meninos, o principal do crescimento se estende até os 15 anos de idade óssea. Depois disso, para eles e para elas, há apenas um aumento de mais uns cinco centímetros até a idade adulta.
– Normalmente, nossa idade é muito parecida com a idade óssea. Há algumas crianças que atrasam, que demoram para crescer, e às vezes chegam aos 18 anos com idade óssea de 15 anos. Nesses casos, vão crescer até os 20, 21 anos, porque o osso está atrasado. Ao contrário, a criança com puberdade precoce às vezes tem cinco anos, mas o osso já está com 10. No caso de uma menina, isso significa que ela só teria mais três anos para crescer bem. O que a gente faz é segurar esse osso, deixar ele aberto por mais tempo, para a criança não ficar baixa – observa Leila.
Esse freio no desenvolvimento do esqueleto é um efeito da medicação usada para tratar a puberdade precoce. Mas há um limite. A recomendação é medicar até a idade óssea de 12 anos – depois disso, não há como ter ganho de estatura. O problema é que, em alguns casos, o paciente, às vezes uma criança de sete ou oito anos, já ultrapassou essa faixa. Por isso, é importante procurar ajuda assim que surgem os primeiros sinais da puberdade precoce – antes de a idade óssea impedir um tratamento eficaz.
– O que acontece, muitas vezes, é que a família acha normal. Então, só trazem ao consultório mais tarde, queixando-se de que o filho não cresceu. Faz pouco, recebi um menino de 17 anos, com 1m58cm e histórico de ter começado a puberdade muito cedo. Nesse caso, não tem mais como reverter. O osso já está fechado. No final, o pai perguntou: “E o irmão dele, que é criança ainda, quando é que eu trago?”. Perguntei se ele já tinha pelos. O pai respondeu: “Ah, sim, já está bem desenvolvido”. Quer dizer, há pessoas que não procuram a ajuda no momento certo – afirma a médica.
Dificuldade para encontrar diagnóstico correto
Quando a puberdade precoce da estudante Adriely Gonçalves foi identificada, a endocrinologista estimou que, se nada fosse feito, ela acabaria com uma estatura de apenas 1m42cm. Cerca de cinco anos depois, aos 12 anos e cinco meses, a menina já alcançou 1m53cm, graças ao tratamento. E a expectativa é que chegue no final a 1m59cm – será cinco centímetros mais alta do que a mãe, a contadora Luciana Cardoso Gonçalves.
Foi graças à persistência de Luciana que essa história acabou bem. Quando a filha tinha seis anos, ela notou o aparecimento de pelos nas pernas, nas axilas e também um pouco no púbis. Levou Adriely a duas pediatras que afirmaram não haver nada anormal com a menina. Só a terceira achou que era necessário procurar uma endocrinologista pediátrica.
– Foi então que soubemos que ela tinha um hormônio que não trabalhava bem e estava impulsionando aquilo. Se eu tivesse ficado na primeira opinião, a Adriely não teria crescido e estaria com a puberdade completa – observa a mãe.
A constatação foi que a garota já tinha, aos oito anos, uma idade óssea em torno de 13 anos. Era como se o corpo dela estivesse entendendo que era hora de completar a fase de crescimento. Adriely começou a tomar injeções e a ser medicada. Recentemente, deixou de ingerir um dos remédios, o que fez as mamas começarem a se desenvolver. Em novembro, quando completa 13 anos, o tratamento deve ser suspenso.
Outra garota da Região Metropolitana, Gabriela (o sobrenome não será publicado a pedido dos pais), já está livre das injeções. No caso dela, o sinal alarmante apareceu aos três anos e oito meses. Depois de dar banho na menina, a mãe colocou-a sobre o sofá e se afastou. Quando voltou, ela havia tido um sangramento. Os pais ficaram sem entender o que acontecera.
– Deu um pavor. Não sabíamos se ela tinha se machucado – conta o pai.
Gabriela foi levada imediatamente a uma emergência hospitalar e iniciou um périplo que, três meses depois, resultou no diagnóstico da puberdade precoce. Dos quatro aos 10 anos, foi submetida a injeções mensais. Quando o tratamento chegou ao fim, o adeus às agulhas e às seringas foi muito festejado pela família. Era o ponto final em um suplício. Agora, Gabriela tem 12 anos, mede 1m65cm e já teve a primeira menstruação. Os seios também apareceram.
– Ela está com o crescimento normal, na idade certa, e ainda pode aumentar mais uns cinco centímetros. Se não fizesse o tratamento, só teria crescido mais cinco centímetros depois dos quatro anos de idade – revela o pai.