A Organização das Nações Unidas (ONU) pediu nesta sexta-feira que os países atingidos pelo zika vírus – suspeito de ter relação com má formação congênita, como a microcefalia – permitam o acesso de mulheres à contracepção e ao aborto.
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O Alto Comissário para os Direitos Humanos da organização, o jordaniano Zeid Ra'ad al-Hussein, dirige o apelo especificamente aos países sul-americanos, muitos dos quais não permitem o aborto. Algumas dessas nações, incluindo o Brasil aconselharam as mulheres a evitar a gravidez devido ao risco representado pelo vírus.
– Claramente, a propagação do zika é um grande desafio para os países da América Latina. No entanto, o conselho dado por alguns governos às mulheres para que evitem engravidar ignora que muitas mulheres não têm qualquer controle sobre o momento ou as circunstâncias nas quais podem ficar grávidas, especialmente em âmbitos onde a violência sexual é bastante habitual – assinalou, em um comunicado, Al-Hussein.
No Brasil, um dos mais afetados pela epidemia, a interrupção da gravidez é proibida, salvo em casos de estupro, riscos de vida para a mãe ou em caso de feto anencefálico. A microcefalia e outras má-formações dificilmente são diagnosticadas antes da 20ª semana de gestação, no quinto mês de gravidez. O número de casos de microcefalia associados ao zika abriu uma discussão sobre o acesso à interrupção da gestação no país.
– Como podem pedir às mulheres que não engravidem, mas não oferecem a possibilidade de prevenir a gravidez? – declarou a porta-voz do comissário de Direitos Humanos da ONU, Cécile Pouilly, referindo-se às legislações restritivas em países na América Latina.
Recomendação tem importância simbólica, mas pode impactar países
A declaração do principal comissário de Direitos Humanos da ONU, defendendo a interrupção voluntária da gravidez em países que enfrentam surto de zika vírus, não tem impacto direto na forma como cada nação lida com o tema, mas carrega grande importância simbólica.
Ao defender o aborto, temendo que a epidemia de microcefalia se espalhe, a ONU acaba sugerindo que seus países-membros revejam a própria legislação sobre o tema.
– É um apelo que alguns países podem atender, mas não tem efetividade sozinho. Para que resultasse em alguma mudança nas leis, precisaria ser apreciado em assembleia – explica Cezar Roedel, professor de Relações Internacionais da Faculdade da Serra Gaúcha.
A recomendação pode até ser levada em consideração pelas nações sul-americanas que decidirem discutir o tema, mas sua influência é restrita, conforme o professor de Relações Internacionais Bruno Lima Rocha.
– Entende-se que a ONU defende valores universais, que se aproximem de um consenso possível da humanidade. Mas o assunto é controverso, e essa posição das Nações Unidas não é consenso. Nem significa que qualquer lei vá ser alterada: o Brasil, por exemplo, tem sido condenado pelo seu sistema carcerário, e alguma coisa mudou? – questiona o pesquisador, que dá aulas na Unisinos e na ESPM-Sul.
Possibilidade de aborto de bebês com microcefalia divide opiniões
No Brasil, um grupo de advogados, acadêmicos e ativistas vai pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) o direito ao aborto em gestações de bebês com microcefalia. O documento deve ser entregue aos ministros em até dois meses. A iniciativa divide a opinião de especialistas na área da saúde.
O secretário da Saúde do Rio Grande do Sul, João Gabbardo dos Reis, se posicionou a favor da atual legislação, que permite o aborto nos casos de estupro, em que há risco de vida para a mãe ou quando a criança nasceria com anencefalia (quando o feto não desenvolve cérebro e cerebelo).
– Existe já uma definição da lei sobre em que situações e em que casos (os abortos) podem ser feitos, e eu continuo achando que nós temos que respeitar a lei. Não dá pra comparar uma criança com microcefalia com uma criança anencéfala.
Para a Sociedade de Pediatria do Estado (SPRS), ainda não há informações suficiente sobre o zika vírus e sua relação com a microcefalia que justifiquem a possibilidade de se interromper a gravidez. Como a gravidade com que a doença pode afetar cada feto ainda é desconhecida, a instituição entende que é preciso conhecer melhor seus efeitos antes que o aborto em casos de microcefalia torne-se uma alternativa no Brasil.
– Não dá para generalizar a opção pelo aborto, cada caso é um caso. E se a criança fosse ter apenas um grau leve de microcefalia? Ainda não temos como saber. O aborto poderia ser uma decisão precipitada – diz a presidente da SPRS, Cristina Targa Ferreira.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) entende que a proposta de aborto para os casos de microcefalia é "um total desrespeito à vida". O presidente da conferência e arcebispo de Brasília, dom Sérgio da Rocha, tratou do assunto em um encontro com a presidente Dilma Rousseff e o ministro da Saúde, Marcelo Castro, na quinta-feira.
"O estado de alerta, contudo, não deve nos levar ao pânico, como se estivéssemos diante de uma situação invencível, apesar de sua extrema gravidade. Tampouco justifica defender o aborto para os casos de microcefalia" , destacou, em nota, a CNBB.
Dias antes de a ONU recomendar o aborto em países com surto de zika, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou estado de emergência sanitária mundial por conta da ameaça. A declaração, dada apenas em casos de ameaças globais, representa o maior nível de alerta da OMS.
* Zero Hora, com agências