Uma substância que promete a cura milagrosa de todos os tipos de câncer colocou os médicos brasileiros em estado de alerta nas últimas semanas. Dispostos a agarrar qualquer esperança, pacientes começaram a abandonar os tratamentos tradicionais e a colocar a saúde em risco para usar a droga, jamais testada e de efeitos colaterais imprevisíveis.
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Para complicar o cenário, decisões judiciais amparadas por liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) passaram a garantir o acesso à substância a centenas de pessoas. Além de assustar os especialistas da área, a situação alarmou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável por aprovar medicamentos no país. A entidade ressaltou que a segurança e a eficácia do produto não foram avaliados.
A febre em torno da droga, conhecida como fosfoetanolamina, alastrou-se com rapidez, transmitida principalmente por notícias sobre sua suposta eficiência e por comentários nas redes sociais. No começo do mês, a Assembleia Legislativa gaúcha chegou a homenagear os cientistas que a desenvolveram.
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O pesquisador André Fay, professor de oncologia na Faculdade de Medicina da PUCRS, afirma que 100% de seus pacientes vieram questioná-lo sobre a substância nos últimos dias. Entre colegas, ele recolheu relatos de doentes que abriram mão de tratamentos seguros para abraçar as promessas sem fundamento da substância.
- Essa droga não tem nada de especial. Não é um medicamento. Nunca foi testada em humanos. Existem apenas pesquisas muito iniciais, feitas com culturas de células, que mostraram alguma propriedade contra o câncer. Mas é necessário pesquisar de 5 a 10 mil moléculas passando por várias fases, ao longo de muitos anos, até encontrar uma que funcione como medicamento. A fosfoetanolamina não passou por esse processo - alerta Fay.
Universidade chegou a vetar produção
A substância foi desenvolvida no início da década de 1990, pelo químico Gilberto Chierice, então servidor no campus de São Carlos, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP). Apesar de não ter levado adiante as pesquisas com a molécula, o hoje aposentado Chierice passou a produzi-la e a distribuí-la.
No ano passado, no entanto, a universidade vetou a continuidade da produção pelo laboratório, por inexistência de registro no Ministério da Saúde e na Anvisa. Mais de 500 liminares de pacientes exigindo a droga chegaram ao Judiciário paulista. A USP havia conseguido barrar os pedidos, graças a uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, mas, em 6 de outubro, a situação sofreu uma reviravolta. Julgando caso apresentado pelo advogado carioca Dennis Cincinatus - que requeria a substância para tratar sua mãe, Alcilena Cincinatus - o ministro do STF Edson Fachin concedeu uma liminar para entrega das cápsulas à paciente.
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A partir da liminar, ocorreu um efeito cascata. O TJ de São Paulo começou a proferir uma enxurrada de decisões obrigando a universidade paulista a fornecer a substância. Filas de pacientes ansiosos passaram a se formar diante do Instituto de Química.
Com as decisões judiciais, a USP viu-se na posição de ser forçada a produzir um remédio não autorizado - uma vez que ele não passou pelos protocolos científicos e não foi aprovado pela Anvisa. A situação gerou reações contra a chamada judicialização da Medicina - quando juízes tomam decisões sobre tratamentos sem ter o conhecimento científico correspondente.
- Com a decisão, o Supremo autoriza que um medicamento seja utilizado sem prescrição médica e sem registro na Anvisa, o que cria um ambiente de risco à saúde - manifestou-se Jarbas Barbosa, diretor-presidente da agência.
Como a USP é uma universidade estadual, pacientes de outras partes do país também passaram a ingressar na Justiça de São Paulo pelo mesmo direito. Depois de uma cirurgia para retirada de um tumor, o administrador de empresas catarinense Jonas Eduardo de Borba, 39 anos, não quis fazer o tratamento tradicional. Procurou um advogado de sua região, que encaminhava vários casos parecidos à justiça paulista, e obteve sentença favorável. A droga chegou pelo correio.
- Faz apouco tempo que tomo o suplemento e ainda é cedo para afirmar alguma melhora, mas vou continuar tomando - diz o paciente.
A confiança dos doentes na solução mágica da fosfoetanolamina gera uma série de preocupações entre os profissionais de saúde. Por um lado, eles temem que os pacientes abandonem seus tratamentos, agravando a própria condição. Por outro, preocupam-se com os possíveis efeitos nocivos da substância. Além disso, consideram que o caso pode arranhar a credibilidade internacional da pesquisa no Brasil.
- A fragilidade dos pacientes é compreensível, mas estão vendendo isso como se fosse a cura para qualquer tipo de câncer. Cada câncer é diferente. Exige um tratamento conforme sua biologia. Mesmo que essa droga se mostre efetiva no futuro, vai ser para alguns casos. Além disso, niguém sabe em que dose ela pode ser usada com segurança - diz André Fay.
A Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica não recomenda o uso e afirma que são necessários estudos que comprovem benefícios da fosfoetanolamina. O presidente da entidade, Evanius Wiermann, criticou as decisões judiciais por criarem uma jurisprudência que pode abrir caminho para o uso de substâncias sem validação científica. Ele afirmou que a Sociedade vai tentar sensibilizar o STF para uma mudança de posição.
- As drogas interagem umas com as outras, podendo interferir em outros medicamentos. O paciente não deve abandonar o tratamento padrão pelo alternativo - diz Wiermann.
"Agora, virou uma bola de neve", diz cientista
O professor Marcos Vinicius de Almeida, um dos cientistas que trabalham no estudo da fosfoetanolamina, demonstrou surpresa ao descobrir, em março, que a substância já vinha sendo usada por pacientes de câncer. Pesquisador da Uniesp em Bauru (SP), ele tomou conhecimento da novidade pela imprensa.
- Algumas pessoas vêm tomando isso, mas não sei bem como é a distribuição. Fiquei espantado. Imaginei que isso ia demorar. Nem publicações estávamos fazendo, para não comprometer a patente. Agora, virou uma bola de neve - afirmou.
Almeida pesquisa a substância desde 2001 e afirma já tê-la testado em ratos, porcos e coelhos. Em dado momento, resolveu virar cobaia do próprio estudo, apesar de nunca ter tido câncer. Movido pelo interesse de descobrir possíveis efeitos colaterais em humanos, utiliza a fosfoetanolamina, em cápsulas, há cerca de 10 anos.
- Comecei a tomar para ver se ela melhorava alguma coisa. A princípio, não tem efeitos colaterais - assegura.
O pesquisador reconhece que nunca foram feitos os testes clínicos exigidos pela Anvisa, mas diz haver interesse em realizá-los, inclusive no Rio Grande do Sul. No começo do mês, seu grupo foi procurado pelo deputado estadual gaúcho Marlon Santos (PDT), que intermediou uma reunião com representantes do governo do Estado.
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A Secretaria Estadual de Saúde confirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, uma conversa do governo estadual com os pesquisadores. O órgão disse, no entanto, que a pauta seria técnica e preliminar, e não haveria, ainda, uma definição sobre testes em hospitais do Estado.
No começo de outubro, por proposição de Marlon Santos, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul concedeu a medalha do Mérito Farroupilha a Gilberto Chierice, o desenvolvedor da droga, e homenageou outros quatro pesquisadores, incluindo Almeida. Na ocasião, Chierice manifestou ter ficado "muito surpreso" com a homenagem do parlamento gaúcho.
Laboratório diz que não se responsabiliza
Forçado pela Justiça a produzir e entregar a fosfoetanolamina a pacientes de câncer, o Instituto de Química de São Carlos tem procurado se dissociar de responsabilidades pela substância.
Em nota, o instituto afirma que a droga foi estudada de "forma independente"pelo professor aposentado Gilberto Orivaldo Chierice e que o trabalho contou com a participação de "pessoas que não têm vínculo com a Universidade de São Paulo". Segundo a instituição, o fornecimento do produto pelo pesquisador foi uma decisão pessoal.
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A nota do instituto observa que a distribuição da substância fere a legislação federal e que não existem "dados sobre a eficácia da fosfoetanolamina no tratamento dos diferentes tipos de câncer em seres humanos". A produção vem sendo realizada, segundo o instituto, em caráter excepcional, para atender as decisões judiciais. A droga não é acompanhada de bula ou de informações sobre contraindicações e efeitos colaterais.
Procurada por ZH, a assessoria de comunicação do Tribunal de São Paulo afirmou que o presidente, desembargador José Renato Nalini, não falaria sobre o caso. No começo do mês, ao rever a posição do tribunal, autorizando a entrega da droga, Nalini reconheceu que a fosfoetanolamina não é um medicamento e que cabe à USP e à Fazenda "alertar os interessados da inexistência de registros oficiais da eficácia da substância". Mesmo assim, considerou que é necessário resguardar o "direito à saúde".
O alerta do dr. Dráuzio
No domingo, o oncologista Drauzio Varella fez um apelo, pelo programa Fantástico, da TV Globo, para que os pacientes não interrompam seus tratamentos e não se coloquem em risco recorrendo ao uso da fosfoetalonamina. Confira alguns trechos do que ele disse:
"Nesta semana, quase todos os meus pacientes me perguntaram sobre essa droga, que alguns acreditam ser capaz de curar qualquer caso de câncer. Cuidado. Esses comprimidos que vêm num saquinho plástico, sem rótulo, nem bula, tem enganado muita gente. Não é possível você garantir que há uma droga que é absolutamente segura, que aja contra a doença e que não provoque nenhum mal para o organismo. Nunca existirá uma única droga capaz de tratar todos os tipos de câncer. Por quê? Porque o que nós chamamos de câncer são mais de 100 doenças diferentes, cada uma delas dividida em vários subtipos. Perdi um irmão com câncer de pulmão aos 45 anos de idade. Conheço essa história dos dois lados, como médico e como familiar. E é desesperador você ver uma pessoa chegando ao fim da vida, uma pessoa que você ama, sem poder fazer nada. Agora, despertar esperanças vãs, descabidas, acrescenta mais sofrimento."
*Colaboraram Bruna Vargas e Fernanda Ribas
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