O verbo estudar está tão presente na realidade de crianças e adolescentes brasileiros quanto outro de mesma terminação: madrugar. Com o início das aulas nas primeiras horas da manhã, o modelo que impera nas escolas seria prejudicial às horas de sono e, consequentemente, ao desempenho escolar. A conclusão é de um relatório sobre o tema divulgado no início deste mês pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos.
Segundo o documento, apenas uma em cada seis escolas americanas de Ensino Fundamental e Médio começa as aulas às 8h30min ou depois, horário recomendado pela Academia Americana de Pediatria. Pelo menos dois terços dos adolescentes não dormem a quantidade de horas - nove - considerada o suficiente. No Brasil, a situação é parecida. As aulas geralmente se iniciam próximo das 7h30min e há relatos de problemas com o sono.
- É uma dificuldade que enfrentamos aqui também. Os horários, como estão organizados hoje, não permitem aos estudantes dormirem o que precisam de verdade. Não é apenas porque eles não querem dormir mais cedo. Tem uma tendência biológica envolvida - afirma Fernando Louzada, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista na ciência do sono e suas relações com a aprendizagem e o desempenho escolar.
Um levantamento do Instituto de Pesquisa e Orientação da Mente, realizado em parceria com o Instituto Sou +Jovem, mostrou que 43% dos entrevistados brasileiros, com idades entre 14 e 18 anos, dormem de três a cinco horas por noite. O pouco tempo de descanso poderia levar ao baixo rendimento escolar, ao excesso de peso, a alterações de humor, à intensificação da hiperatividade, à dificuldade de concentração e fixação do conteúdo e a comportamentos de risco, como uso de drogas e álcool.
No Brasil, tema é negligenciado
Para o pediatra Gustavo Moreira, pesquisador do Instituto do Sono, de São Paulo, não é novidade que o formato atual tem efeitos prejudiciais para crianças e adolescentes. A comunidade científica estuda o assunto há pelo menos duas décadas e já chegou a conclusões sobre o tema.
- Há várias pesquisas que mostram que atrasar os horários melhora o desempenho escolar. Isso já é sabido, não é de agora. Mas esses estudos acabam tendo mais ênfase fora do país. Uma mudança envolveria uma estratégia ampla, e há dificuldades - ressalta Moreira.
Da área médica à pedagógica, especialistas reconhecem a necessidade de uma reflexão mais aprofundada sobre o tema nas escolas brasileiras. Tania Marques, professora de psicologia da educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), entende que o assunto é negligenciado em todos os âmbitos sociais.
- Muitas pesquisas não têm sido levadas adequadamente em conta. Há tanta coisa que está acontecendo na educação que essa questão do sono acaba sendo relegada. Eu não vejo argumentos pedagógicos para não defender as aulas mais tardias. É questão de saúde - diz Tania.
Para estudar, madrugar
É noite lá fora quando o despertador toca na casa da família Scheibel, às 5h45min. A pedagoga Luciane, 37 anos, dita o ritmo da arrumação dos três filhos de olho no relógio: para evitar atrasos, eles deixam a residência às 6h45min. Moradores de Canoas, eles precisam estar em Porto Alegre às 7h30min para ingressar no primeiro período do Colégio Rosário. Desde 2012, as crianças passaram a estudar de manhã e na Capital.
- A adaptação não foi difícil, mas precisamos ter muita disciplina e organização - conta Luciane.
Arthur, 14 anos, Heitor, 9, e Isabela, 7, levantam sonolentos - mesmo que a família tenha regras rígidas quanto ao horário de ir para a cama, entre 21h e 22h.
- Acordar e comer é uma das principais dificuldades para eles. Demora mais. Acabamos optando por sempre sentar e lanchar sem conversar muito - diz a mãe.
No caminho para a escola, Isabela vai cochilando. Heitor e Arthur também admitem fadiga.
- Todo mundo fala que acordar cedo é coisa de costume, mas eu ainda não consegui. A mãe me chama e eu continuo dormindo - diz Arthur.
Dormir perto da meia-noite e ter dificuldades para acordar não é só uma questão de desorganização familiar ou hábito. Os pesquisadores reconhecem a contribuição dos aparatos tecnológicos nesse quadro, mas, principalmente no caso dos adolescentes, há uma tendência biológica envolvida.
- Modificações hormonais fazem com que eles tendam a dormir mais tarde. Não adianta obrigar a deitar mais cedo que ele não vai pegar no sono. Isso ainda leva a uma irregularidade, pois, no fim de semana, ele tenta dormir mais - alerta o especialista Fernando Louzada.
Enquanto crianças pequenas e idosos costumam ser mais matutinos, a proximidade da adolescência gera uma fase de transição. Geralmente, o comportamento vespertino ganha força.
- Entre sete e nove horas da manhã, o adolescente não estará funcionando muito bem. O relógio biológico que controla nosso ritmo dita isso durante o dia - afirma o pediatra Gustavo Moreira.
Na opinião de Louzada, o ideal seria uma grade mais flexível:
- Perfeito seria se o aluno pudesse ter atividades das 9h ao meio-dia e das 14h às 16h. Lógico que tem todo um processo envolvido, mas essa questão está afetando o desenvolvimento dos alunos. Isso precisa ser debatido.
Por que a mudança no padrão dos horários encontra barreiras aqui?
- No Rio Grande do Sul, o começo das aulas na maioria das escolas fica concentrado entre 7h30min e 8h. Hoje, a legislação brasileira não é específica quanto ao início e ao término das atividades.
- O atraso no horário encontra obstáculos administrativos, de infraestrutura e de logística.
- Segundo Bruno Eizerik, presidente do Sindicato do Ensino Privado (Sinepe-RS), uma mudança no horário de início das aulas do Ensino Fundamental e Médio atrapalharia a sequência de períodos dos professores.
- A Secretaria da Educação reconhece as consequências da privação de sono na aprendizagem. O posicionamento do órgão é que, para ocorrer alterações, a comunidade precisaria participar ativamente da discussão.
- Mudanças são possíveis desde que pensadas e articuladas em parceria com as famílias e as escolas. Mas não existe previsão de projeto de lei sobre isso, afirma Lucia Paim Guazzelli, assessora pedagógica da Coordenação de Gestão da Aprendizagem do Departamento Pedagógico da Secretaria da Educação.
- Alguns especialistas defendem que não é preciso transformar todo o sistema de ensino, mas atrasar em meia hora o início das aulas já seria uma mudança importante para a qualidade de vida dos estudantes.