Todos nós temos uma tendência incontrolável de sugerir o que deve ser feito em cada circunstância, principalmente quando o sugerido não tem nada a ver conosco. Um dia me surpreendi dando conselhos a um casal de velhos, meus pacientes antigos, que estavam sós, depois que os filhos se afastaram para cuidar de suas próprias vidas, e até as visitas deles passaram a ser marcadas com antecedência, porque as presenças barulhentas eram uma quebra quase dolorosa do ritual de fazer nada o tempo todo, dia após dia.
Achei adequado estimulá-los a mudar a rotina, a sair de casa, a passear na pracinha próxima, a ir ao cinema, essas coisas. E então ouvi a resposta de quem já tinha pensado muito no assunto: "Doutor, nós temos uma vida boa e confortável e a gente só deve mudar o que não funciona bem, e este não é o caso. Nós gostamos até do nosso silêncio".
Uns tempos depois ela morreu, e os quatro filhos organizaram uma força-tarefa para que o pai fosse viver com eles, em revezamento. Aos olhos deles, não fazia nenhum sentido ele sozinho naquela casa enorme. Os argumentos eram razoáveis, "ele estaria sempre aos cuidados de um dos filhos, que apesar de aparecerem pouco, estavam sempre pensando nele". Sei.
Além disso, na idade dele, "era sempre bom ter alguém por perto, para essas emergências que, Deus nos livre, não escolhem hora". O velhinho tentou argumentar que morava a menos de uma quadra da emergência de um grande hospital e foi fuzilado pela pergunta da nora autoritária: "Então o senhor prefere ser atendido por estranhos? Francamente!".
De nada serviu afirmar que preferia não incomodá-los porque eles tinham as próprias rotinas, e ele mesmo estava acostumado com horários de sono que não combinavam com os deles. Mentiu dizendo que deitava às 20h e acordava às 5h, com ideia de alarmá-los, mas todos tinham casas com quartos de hóspedes que lhe assegurariam uma independência de Robinson Crusoé. Então, "chega de discussão e trate de arrumar as malas".
Com as desculpas escasseando, assegurou que o simples áudio do Domingão lhe aumentava a glicose, e que uma vez tivera uma febre inexplicável depois de assistir a um único episódio do Big Brother. Nada feito, ele teria a sua própria TV e poderia assistir ao que quisesse.
Desesperado, apelou para a música clássica que sempre fora a paixão dele e da mulher e que, agora, com a surdez da idade, se obrigava a ouvir num tom que incomodaria a todos e, especialmente, aos mais jovens. Também não funcionou.
Então, exauridos os pretextos e em pânico pela possibilidade de abandonar aquela casa que teria vergonha de confessar, amava mais do que a alguns dos seus parentes queridos, abriu os braços na imensa biblioteca e declarou solenemente: "Só saio da minha casa se puder levar todos os meus livros!".
Houve uma troca de olhares intrigados, e começou a debandada, liderada pelas noras. "Impossível dialogar com um velho desses! Que coisa triste a caduquice!" Depois que o último carro dobrou a esquina, ele fechou as cortinas e, aliviado, passou o ferrolho na porta. Serviu um cálice de Amarula, se recostou na poltrona de couro e aumentou o volume para que Puccini enchesse a sala. Muito lhe faltava a Lucila, mas com os olhos fechados, Nessun Dorma era uma companhia prodigiosa.