Quem se aventura por caminhos desconhecidos na busca da afirmação pessoal que depende muito dessa capacidade de desbravamento invariavelmente descobre que temos muito menos coragem do que necessitaríamos para dar a essa vida sacudida um ar de cotidiana naturalidade. A descoberta da coragem como virtude essencial é o primeiro passo, e o curso da empreitada se encarregará de mostrar que a administração da pouca que temos é um critério de sobrevivência no mundo competitivo.
Nos anos 80, o investimento em transplante representava mais do que um salto de qualidade no serviço que começava a ganhar reconhecimento nacional. Era também a oportunidade de expandir o horizonte pessoal e institucional. Ingrediente indispensável: ousadia, essa irmã siamesa da coragem.
Impossível não ter medo numa tarefa que não podia ser clandestina e que trazia uma certeza absoluta: acontecesse o que acontecesse, nunca mais seríamos os mesmos depois dela. A identificação do receptor, corajoso e determinado, foi o primeiro passo, mas deste ainda poderíamos desistir porque, afinal, ninguém nos obrigaria a um pioneirismo maluco, e o crime de omissão não poderia ser caracterizado porque não havia jurisprudência.
A saída estratégica para que a covardia não prevalecesse foi tocar o projeto como corriqueiro e criar circunstâncias que envolvessem outras pessoas de modo a criar âncoras de sustentação, impedindo qualquer chance de recuo quando surgisse um doador. E, então, aconteceu. Na tarde de 15 de maio de 1989, avisaram que havia um jovem de tipo sanguíneo A, em morte encefálica, no Hospital São Francisco.
O tamanho era compatível e, com o nível de adrenalina em curva ascendente, começaram os preparativos. Quando retiramos o pulmão esquerdo, eu e o Dagoberto, meu amigo querido, atravessamos a velha Santa Casa com o órgão precioso numa bacia envolta em campos esterilizados, transportada naqueles corredores escuros ao ritmo de corações acelerados. A força motriz do medo que nos impulsionava estava flagrante no silêncio absoluto que nos acompanhou naquele trajeto. Dois dias depois, com tudo correndo maravilhosamente bem, uma repórter fez a pergunta previsível: "E o doutor não sentiu um friozinho na barriga durante esta experiência pioneira?". A resposta parecia verdadeira: "Não. Tudo estava tão ensaiado que nem demos chance para o medo!". Que bravura! Que mentira!
Hoje sei bem que a negação do medo não é a afirmação da coragem. É só uma dificuldade bisonha de assumir que em quase todas as encruzilhadas da vida estamos consumidos de medo e ilhados de solidão, o agravante indefectível nas decisões definitivas. Nem acho que esta aparente maturidade no manejo do medo nos faça melhores do que as crianças. Pensei no Fábio, com cinco aninhos completados naquele inverno em que foi internado para uma cirurgia odontológica. Levado de maca até o bloco, teve os cobertores trocados na porta do centro cirúrgico e, ao vê-lo tremer, a enfermeira perguntou: "Com frio, meu lindinho?". Ao que ele respondeu, com a maior naturalidade: "Eu tô é com medo!".
Bem bom descobrir que eu tinha um filho sem necessidade de simular valentia. Pelo menos enquanto não se expusesse ao mundo falacioso dos adultos.