Lançado em 2013 pelo governo federal com o objetivo de suprir a carência de atendimento em regiões interioranas e nas periferias de grandes cidades, o Mais Médicos se consolidou no Rio Grande do Sul ao longo de uma década. Em 2024, o programa chegou ao maior contingente no Estado desde a criação, no que representa crescimento superior a 500% no número de profissionais, em comparação com o primeiro ano.
Conforme dados do Ministério da Saúde, em março de 2024 havia 1.451 médicos atendendo no Estado, distribuídos em 374 municípios – ou seja, três em cada quatro cidades gaúchas. Esse contingente é 560% maior do que no final de 2013, primeiro ano de vigência do programa, quando apenas 219 profissionais atuavam no RS.
Essa variação, entretanto, não foi linear e acabou influenciada pelas idas e vindas do projeto, motivadas por contendas no campo político e resistência de entidades médicas.
Criado no governo Dilma Rousseff (PT), o Mais Médicos tornou-se alvo da oposição por importar efetivo de outros países, sobretudo de Cuba. Por outro lado, registrou avaliação majoritariamente positiva entre a população atendida pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Ao final de 2018, com a saída do governo cubano a partir de rusgas com o então presidente eleito, Jair Bolsonaro (PL), o número de médicos despencou quase à metade. Voltou a subir nos anos seguintes, quando Bolsonaro tentou substituí-lo pelo projeto Médicos pelo Brasil, até registrar nova baixa no ano de 2022.
No primeiro ano sob o novo governo Lula, o Mais Médicos retomou o nome original, foi remodelado e dobrou a quantidade de profissionais no Rio Grande do Sul. Esse crescimento, registrado também em outros Estados, é creditado à reformulação do programa, cuja medida provisória foi aprovada pelo Congresso em junho do ano passado. Diferentemente da versão anterior, o novo modelo não inclui vínculo com Cuba ou outras nações e prioriza o preenchimento das vagas por brasileiros formados no país. Só depois o posto é oferecido a quem se formou no Exterior ou a médicos estrangeiros.
Além disso, o tempo máximo de participação foi estendido de três para quatro anos (prorrogáveis pelo mesmo período), o valor das licenças maternidade e paternidade foi ampliado e o governo ofereceu adicional de fixação de até R$ 120 mil para áreas consideradas mais vulneráveis – o bônus pode chegar a R$ 450 mil no caso dos que se formaram com o Financiamento Estudantil (Fies).
As mudanças visaram, sobretudo, atrair mais interesse ao programa, já que o ano de 2023 começou com 4 mil equipes de saúde da família desfalcadas, apenas 13 mil profissionais vinculados em todo o país e sem previsão orçamentária para reforço. No início deste ano, após a abertura de novos editais, o contingente chegou ao recorde histórico de 28,2 mil médicos, sendo 95% brasileiros.
As críticas da classe médica
Além do atendimento ao público, aspecto mais conhecido da população, outra função do Mais Médicos é qualificar os profissionais. Todos devem cursar especialização no período que integrarem o programa. De acordo com o secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde, Felipe Proenço de Oliveira, o foco atual é estimular a formação de especialistas em Saúde da Família e Comunidade. Hoje, o país conta com 13 mil profissionais nessa condição, um quarto do que seria necessário para todas as equipes de Saúde da Família.
– Esse é o médico que conhece a família toda, acompanha a gestante, a criança, o idoso, a mulher e o adulto e sabe quais as condições dessas pessoas ao longo do tempo – explica Proenço.
Entre entidades que representam a classe médica, a visão sobre o Mais Médicos é negativa. No geral, a avaliação é de que o programa contrata profissionais com vínculo precário e é um obstáculo na valorização da categoria. O vice-presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), Fernando Uberti, critica o fato de que profissionais formados fora do país, brasileiros ou estrangeiros, não precisarem passar pelo exame de revalidação do diploma no Brasil (Revalida).
– Não somos contra a presença de médicos estrangeiros, desde que comprovem qualificação mínima e o conhecimento para tratar da saúde das pessoas, como ocorre em outros países – afirma Uberti.
Não somos contra médicos estrangeiros, desde que comprovem qualificação e conhecimento.
FERNANDO UBERTI
Vice-presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers)
O dirigente defende a criação de uma carreira federal para os médicos, com custos diluídos entre União, Estados e municípios. Segundo ele, isso ajudaria a fixar os profissionais em locais distantes:
– Os médicos deveriam ter uma carreira semelhante ao e ao Ministério Público. Não falamos somente da remuneração, que deve ser compatível com o tempo de formação e a responsabilidade, mas de ter segurança funcional e condições de trabalho.
O presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), Eduardo Trindade, também critica o fato de os intercambistas não precisarem passar pelo Revalida e diz que, em muitos casos, o Mais Médicos apenas substituiu, a um custo menor, profissionais que antes eram contratados pelas prefeituras:
– Se realmente queremos fixar médicos no interior, não pode ser através de um programa de pós-graduação que não dá garantias necessárias para o médico ficar em um município de pequeno porte.
Foi com profissionais do exterior que tivemos resultados expressivos e satisfação da população.
FELIPE PROENÇO
Secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde
O secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde minimiza as críticas e diz que a análise sobre o programa deve levar em conta os resultados da política pública:
– Foi com a presença de médicos formados no Exterior que tivemos resultados expressivos de redução da mortalidade infantil, queda na internação por doenças cardiovasculares e na satisfação da população. Mais de 95% das pessoas dá nota 9 ou 10 para o atendimento pelo Mais Médicos – ressalta Felipe Proenço.
Atualmente, o Brasil conta com 2,5 médicos a cada mil habitantes, enquanto a média de países da OCDE, grupo que reúne os países desenvolvidos, é de 3,7 médicos a cada mil residentes.
A experiência do estrangeiro
Andres Rafael Ajete Llerena desembarcou em julho de 2017 em Carlos Barbosa, na Serra, com a missão de reforçar a equipe de saúde do município. Em sete anos, viveu emoções distintas: foi da euforia com o acolhimento de colegas e pacientes à angústia pelo rompimento do governo cubano com a iniciativa, que o obrigou a retornar a Cuba ao final de 2018.
Ajete, no entanto, já havia conhecido a atual esposa, Catarina, moradora de Garibaldi, e estava decidido a ficar no Brasil. Pediu desligamento do sistema de saúde do país caribenho e veio morar em definitivo no Rio Grande do Sul.
Após dois anos praticamente sem conseguir trabalhar, se inscreveu em um edital do Mais Médicos em 2020 e foi atender em Canoas. Em 2024, foi chamado em Nova Santa Rita, também na Região Metropolitana, para assumir a unidade móvel que leva assistência a comunidades distantes do centro. Prestes a encaminhar a documentação para obter cidadania brasileira, o médico de 53 anos é só elogios ao Mais Médicos, sobretudo pela capacidade de ampliar o atendimento na atenção básica:
– As pessoas ficam doentes por falta de informação. Elas precisam receber educação sobre saúde, e isso só é possível com um sistema de atenção primária fortalecido, que faz as pessoas saberem como cuidar da saúde e evitar doenças crônicas, autoimunes e o câncer, por exemplo – ensina.
Outro médico cubano que resolveu viver no Brasil é Eduardo Alonso Romo. Ele trabalhou no Amapá até o encerramento do convênio entre Brasil e Cuba e recusou-se a retornar ao seu país de origem em 2018.
Médico de família com mais de três décadas de trabalho, Alonso chegou a Porto Alegre em 2020 para atender nas unidades básicas de saúde. Passou por bairros como Passo das Pedras e Rubem Berta até chegar ao posto atual, na Clínica da Família do IAPI. Em todos esses lugares, impressionou-se com a aceitação da comunidade.
– Hoje, não tenho nada a reclamar. Tenho um bom salário, recebo em dia, tenho ótimas condições de trabalho e, principalmente, consigo ajudar a comunidade a melhorar os indicadores de saúde – celebra.
Crítico do formato anterior do programa, que repassava 70% do salário ao governo cubano, Alonso, de 55 anos, foi punido pelo regime da ilha por ficar no Brasil: está impedido de viajar ao país natal para visitar seus dois filhos até 2026.
Elogio e sugestão de melhora
A brasileira Ianna Rocha está há três atendendo pacientes do extremo-sul da Capital, no bairro Belém Novo. Nascida em Rio Branco (AC), Ianna formou-se em Cochabamba, na Bolívia, e passou por Paraná, Rondônia e Sergipe antes de aportar no Rio Grande do Sul.
No período de atuação em Porto Alegre, a médica construiu um relacionamento estreito com as famílias da região: além das consultas rotineiras, faz visitas domiciliares e encontra semanalmente um grupo de idosos hipertensos e diabéticos para tirar a pressão, medir a glicemia, tirar dúvidas e repassar cuidados.
Entusiasta dos princípios de atenção primária preconizados pelo SUS, está prestes a renovar o vínculo com o Mais Médicos. Por outro lado, diz que gostaria de ter mais tempo para os pacientes.
– Hoje, tenho de atender de 20 em 20 minutos. Nesse tempo, quanto de atenção e qualificação posso entregar? Isso traz prejuízos, inclusive para a saúde mental dos profissionais – aponta.
Dos médicos do programa ouvidos na reportagem, Ianna Rocha foi a única que prestou o exame Revalida. Dedicados à atenção primária, porta de entrada do SUS, os profissionais do Mais Médicos cumprem 36 horas de trabalho semanais e outras oito de formação em curso de especialização. Recebem bolsa de R$ 12,3 mil do governo federal e ajuda de custos das prefeituras.
O cronograma do Mais Médicos
- O Mais Médicos foi criado em 2013, no governo Dilma Rousseff, com a intenção de ampliar o atendimento nas periferias e em cidades do Interior.
- Em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro, os cubanos deixaram o programa. Em sua gestão, Bolsonaro criou o Médicos Pelo Brasil para substituí-lo.
- No modelo de Bolsonaro, os médicos eram contratados conforme regras da CLT e com benefícios como férias e 13º salário, além de gratificação por desempenho.
- A maior parte das 13 mil vagas era concentrada nas regiões Norte e Nordeste do Brasil.
- Em 2023, o governo Lula rebatizou o Mais Médicos e ampliou o número de vagas; no país, há mais de 28 mil médicos vinculados à iniciativa.
- Sob Lula, o pagamento voltou a ser feito por bolsa, mas houve ampliação do valor das licenças maternidade e paternidade e foi oferecido adicional de fixação para áreas mais vulneráveis.