Até o diagnóstico de apraxia, perto dos três anos de idade, Gabriel Chuy de Azeredo Machado circulou por consultórios de diferentes especialistas. Mariana Moraes Chuy, a mãe, já não suportava mais recontar a mesma longa história, que ninguém desvendava. O histórico do primogênito era o de uma criança que não balbuciava, não emitia sons típicos, não batia palminhas. Uma fonoaudióloga infantil de São Paulo, por fim, suspeitou e acertou: o menino apresentava um transtorno motor de fala ainda pouco conhecido e estudado no Brasil.
Por definição, a apraxia é uma condição neurológica: o cérebro falha no envio de comandos motores para a língua, a mandíbula, os lábios. A apraxia em adultos, ao contrário da infantil, é bem conhecida, podendo se estabelecer em consequência de um acidente vascular cerebral (AVC) ou trauma craniano, por exemplo.
Como se saberia mais tarde, por meio de uma investigação mais detalhada, a apraxia de Gabriel está relacionada a uma síndrome genética rara — em geral, os quadros não são puramente de apraxia, envolvendo outras condições. Trata-se de um caso severo, com outros comprometimentos, como déficit intelectual.
O garoto começou a ter acompanhamento de equipe multidisciplinar. Atualmente, ele cursa, aos 11 anos, o 4º ano do Ensino Fundamental, com adaptação curricular e acompanhamento de monitora na sala de aula. Duas vezes por semana, desenvolve atividades em uma sala de recursos. Também frequenta sessões com fonoaudióloga e pedagoga.
O repertório de Gabriel soma cerca de cem palavras. Um aplicativo utilizado no tablet auxilia na comunicação alternativa. Ele aponta para palavras e figuras e diz, por exemplo, o que deseja levar de lanche: sanduíche, suco, bolachinhas. Sociável, o estudante se dá melhor com crianças mais novas, mais pacientes com as brincadeiras de que ele gosta.
A prática de esportes auxiliou no desenvolvimento de outras habilidades comprometidas.
— Ele joga tênis, futebol. A parte motora foi a que mais se incrementou — observa a advogada Mariana, 44 anos.
O envolvimento profundo de Mariana e do marido, o magistrado Cristiano Machado, 44 anos, com um diagnóstico pouco conhecido motivou o contato do casal com outras famílias na mesma situação. Mariana é uma das cofundadoras da Associação Brasileira de Apraxia de Fala na Infância (Abrapraxia), que tem o objetivo de difundir conhecimento sobre o transtorno, capacitar profissionais e mobilizar os legislativos municipais e estaduais em nome da causa. A principal demanda é o reconhecimento de 14 de maio como Dia da Apraxia de Fala na Infância, data para conscientização já estabelecida nos Estados unidos. No próximo sábado, em Porto Alegre, um evento será realizado para acolher pais e familiares de crianças com dificuldades de desenvolvimento (leia mais ao final da reportagem).
— Nossos anseios, na associação, são muito parecidos. Nossa caminhada foi muito parecida. Queríamos encurtar o caminho de outras famílias — comenta Mariana sobre a instituição criada em 2013.
A especialista que descobriu o transtorno de Gabriel integra a Abrapraxia como conselheira técnica. Elisabete Giusti, fonoaudióloga, detalha que a criança nesse diagnóstico tem a intenção, a vontade de falar, mas não consegue. O cérebro falha em planejar e programar os comandos para que se produza a fala.
— Ela não sabe como organizar os movimentos para produzir os sons da fala, o que gera falta de clareza e erros. Ela pode omitir ou substituir sons, tem repertório de consoantes muito restrito. Essa dificuldade para planejar os movimentos da fala impacta no ritmo e na naturalidade da fala. São crianças com tempo de pausa aumentado, fala truncada. Dá uma sensação de fala robotizada — descreve Elisabete.
A dificuldade ou a impossibilidade de verbalização abalam o aspecto emocional, conforme a fonoaudióloga.
— Tem crianças que arregalam os olhos, ensaiam movimentos, mas a fala não sai. Os pais percebem que ela tenta, tateia o movimento. Isso gera angústia porque ela tem a vontade de falar, tem o conceito do que quer falar. Vamos supor que ela queira pedir um sorvete: sabe o que é, tem vontade de pedir, está ali tentando, mas vê que as pessoas não entendem. Causa frustração, isolamento social, insegurança — afirma Elisabete.
É possível identificar o transtorno, em geral, a partir dos três anos, quando o paciente já tem maturidade para fazer os testes necessários. Antes disso, entretanto, surgem sinais de alerta, como ausência do balbucio, bebês muito quietos ou que só emitem gritinhos. A apraxia tem níveis de gravidade, e os casos mais leves podem ser completamente reabilitados.
Há crianças com dificuldades na fala por falta de estímulos adequados — tempo demais em frente à televisão ou jogando videogame, por exemplo. Os períodos de isolamento da pandemia, com aulas à distância, também podem ter provocado interferências importantes em alguns casos.
— Ter deixado as crianças guardadinhas em casa gerou falta de oportunidades, de exposição a conversas — destaca Elisabete.
Quando houver suspeita de problemas, o ideal é relatar ao pediatra e, se necessário, buscar a avaliação de um profissional de fonoaudiologia, que fará uma avaliação completa: entrevista com a família, levantamento da história clínica, análise da parte estrutural, possíveis alterações fisiológicas. O fonoaudiólogo observa como o paciente programa os movimentos da fala, se seleciona o músculo adequado, a duração do movimento e também a amplitude. Uma avaliação auditiva também é solicitada.
— Depois de recebido o diagnóstico de apraxia, o tratamento é uma terapia motora de fala. De forma lúdica, o profissional vai ensinar para a criança os movimentos de fala. Demanda muita prática e repetição, a criança precisa criar memória muscular dos movimentos. É como se fosse fisioterapia para a fala. Os pais precisam estar muito envolvidos — explica Elisabete.
O que é a apraxia
- Trata-se de um transtorno motor de fala. É uma condição neurológica: o cérebro falha no envio de comandos motores para a língua, a mandíbula, os lábios.
- Há três níveis de gravidade: leve (com possibilidade de recuperação total), moderada (a criança chega a atingir de 70% a 80% do desempenho esperado) e severo (dificilmente se alcançará a fluência).
- Casos graves frequentemente são confundidos com autismo — algumas crianças podem apresentar autismo e apraxia, mas não é a regra.
- Dificilmente ocorrerá um quadro de apraxia “pura”. Esses pacientes podem apresentar também dificuldades de coordenação motora (pedalar, nadar, correr com desenvoltura), coordenação motora fina (manusear talheres, lápis, recortar, pintar), desorganização espaço-temporal (esbarram nos objetos, falta de noção de começo, meio e fim). O obstáculo também pode estar ligado a aspectos de integração sensorial: hipersensibilidade a barulho, incômodo com texturas, seletividade alimentar. Tudo isso gera empecilhos para as relações sociais, e as crianças acabam se isolando.
Sinais de alerta sobre o desenvolvimento da fala
- As primeiras palavras devem ser faladas por volta de um ano de idade. Crianças a partir de dois anos que não conseguem combinar duas a três palavras com sentido merecem atenção.
- Aos três anos, a criança tem que alcançar 75% de inteligibilidade de fala — ou seja, você precisa conseguir entender praticamente tudo o que é dito.
- Repertório muito pequeno de sons (não falar todas as vogais, usar apenas duas ou três consoantes) é outro indicador de eventuais dificuldades de desenvolvimento.
- Entre 18 e 24 meses, ocorre o chamado boom do vocabulário, com significativo aumento de palavras. Mês a mês, a quantidade de vocábulos aumenta. Pais e mães podem estranhar que, às vezes, são agregadas palavras que nem costumam ser faladas no ambiente doméstico. O desenvolvimento de fala e linguagem está sempre aumentando. Se esse processo estacionar, estagnar, é sinal de desenvolvimento atípico.
- Outro problema que pode surgir é a perda de palavras por volta dos 18 meses. O bebê que já dizia “mamã”, “papá”, “qué”, por exemplo, de repente deixa de falar.
- Uma criança que entende praticamente tudo o que lhe é dito mas que não consegue fazer a fala acompanhar o mesmo ritmo de desenvolvimento precisa de avaliação.
- O histórico familiar deve ser levado em conta. Há outros casos de atraso no desenvolvimento entre familiares?
- A observação dos professores na escola é fundamental. Eles podem perceber timidez excessiva, incapacidade de boa expressão verbal, desatenção para se comunicar. A criança com problemas de desenvolvimento da fala não consegue seguir o ritmo para se comunicar em relação a seus pares, o que acarreta problemas na socialização.
- Outro sinal que pode chegar da escola é quando o aluno passa a usar o comportamento como forma de comunicação. Uma vez que ele não consegue ser entendido por meio das palavras, pode começar a fazer birra, morder os coleguinhas, chorar.
Palestra de acolhimento
No sábado (14), a Abrapraxia convida pais, mães e demais familiares de crianças com dificuldades de desenvolvimento, independentemente do diagnóstico, para uma palestra de acolhimento, das 9h às 11h30min, na Avenida Senador Tarso Dutra, 161, em Porto Alegre. As inscrições podem ser feitas pelo site apraxiabrasil.org, ao preço de R$ 20. Mais informações pelo telefone (51) 99921-5143.