Desde o início da vacinação contra a covid-19 no país, os brasileiros experimentam dois sentimentos contraditórios: esperança com a chegada dos imunizantes e angústia com a quantidade limitada de doses e o risco de interrupções na campanha por falta de insumos.
Especialistas confirmam que há motivos para preocupação, já que um processo lento ou fragmentado — como o que está no horizonte nacional até o momento — dificulta o atingimento da imunidade coletiva, adia a redução na mortalidade e amplia o risco de mutações do coronavírus potencialmente mais perigosas como a registrada no Amazonas. Além disso, aumenta a possibilidade dessa variante mais infecciosa já descoberta no Norte se alastrar para as outras regiões.
— Demora mais para alcançarmos a imunidade (coletiva) e aumenta o risco de surgirem variações para as quais a população não vai estar protegida, e a vacina talvez já não funcione. Nesse caso, teríamos de reorganizar tudo — alerta a imunologista Cristina Bonorino, professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membro do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia.
Até o momento, não há confirmação de qualquer variante do coronavírus capaz de vencer os imunizantes disponíveis, mas esse é um temor entre imunologistas. O governo federal não agiu, até o momento, com a mesma noção de urgência. Dia 19 de dezembro, o presidente Jair Bolsonaro chegou a dizer, em uma live, que “a pressa pela vacina não se justifica, porque você mexe com a vida das pessoas”. Depois mudou o discurso, mas a campanha contra a covid segue em ritmo incerto.
O governo federal distribuiu 6 milhões de doses da CoronaVac e espera remeter aos Estados nos próximos dias mais 2 milhões da vacina de Oxford provenientes da Índia — que poderiam ser administradas em dose única para acelerar a cobertura vacinal do país. Mesmo assim, e ainda somadas a outras 4,8 milhões de unidades de CoronaVac já produzidas pelo Instituto Butantan no país, seriam suficientes para atender a 3,5% da população.
— O que temos até agora é importante para quem está recebendo a vacina, mas, em termos coletivos, é uma gota no oceano. Precisamos de algo em torno de 70% para alcançarmos a imunidade coletiva — observa o epidemiologista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Paulo Petry.
Outra questão é se os anticorpos dos primeiros a receberem a injeção ainda forneceriam proteção suficiente contra a covid quando os últimos da fila no país estiverem sendo atendidos (talvez dentro de mais de um ano) — o que poderia comprometer a formação de uma barreira mais eficiente contra a doença. Segundo a chefe da Vigilância Epidemiológica do Centro de Vigilância em Saúde (CEVS) do Estado, Tani Ranieri, ainda é cedo para fazer esse tipo de cogitação:
— Ainda não sabemos como isso vai funcionar. No caso da influenza, a imunidade tem pico seis meses depois e dura no máximo um ano. Por isso, a vacinação deve ser anual. No caso do coronavírus, se fui imunizado e em algum momento entrar em contato com o sars-cov-2, posso criar uma nova carga de anticorpos. É cedo para dizer algo.
A biomédica Mellanie Fontes-Dutra, doutora em Neurociências pela UFRGS e coordenadora da Rede Análise Covid-19, avalia que o país só deverá ganhar ritmo de fato no processo de imunização quando começar a produzir os imunizantes em solo nacional e em larga escala. Por isso, lembra que a única saída de curto prazo é manter as medidas de precaução.
— O objetivo é imunizar ao máximo em curto espaço de tempo, mas sabemos que há limitações de doses e de logística. Por isso, devemos adotar ainda mais medidas de enfrentamento como isolamento e distanciamento social e evitar aglomerações — observa Mellanie.
Isso faz com que o vírus circule menos e diminui a frequência de surgimento de variantes — entre as quais pode aparecer alguma que represente maior perigo para a população.