Ver o filho Arthur Chacon Gonçalves, 10 anos, segurando os talheres para comer, tomando banho sozinho e contando a história do filme que acabou de assistir são cenas simbólicas para a professora e artesã Raquel Chacon Gonçalves, 44 anos, mãe do menino. Há duas semanas, Arthur voltou para Cachoeirinha, onde mora com a família, após duas internações em sequência, que totalizaram 59 dias. Vítima de covid-19, o menino foi uma das primeiras crianças no Estado a receber ventilação mecânica por conta da doença.
— Eu acho que ele renasceu! — resume, com orgulho, a mãe.
Bipolar, epilético e com transtorno opositivo-desafiador (TOD), atraso cognitivo e autismo leve, Arthur foi internado no Hospital de Clínicas de Porto Alegre com suspeita de coronavírus quatro dias depois de deixar a mesma instituição, onde ficara internado por 16 dias para ajustar as medicações dos tratamentos aos quais é submetido desde os quatros anos. Raquel recorda que os primeiros sintomas surgiram na madrugada de 30 de março.
Com febre de 39,5°, Arthur foi atendido e medicado na UPA 24 horas de Cachoeirinha. Liberado, recebeu a orientação de voltar se a febre seguisse. Doze horas depois, Raquel retornou ao posto já com o filho sem forças nas pernas. Internado para observação, acabou transferido no dia seguinte para o Hospital Padre Jeremias, onde fez teste para covid-19. Como o quadro se agravou, e o menino era paciente do hospital em Porto Alegre, Arthur baixou no Clínicas em 1º de abril, onde realizou novo teste para a doença.
— O Arthur seria levado direto para a UTI porque a saturação (oxigenação no sangue) estava muito baixa e ele tinha dificuldades para respirar. Não imaginava que era o vírus. Me pediram para aguardar uma hora e 30min. Quando voltei a vê-lo, o encontrei inconsciente e entubado. Fiquei assustada com a imagem. A médica me explicou que a situação era grave — recorda Raquel.
No dia seguinte à internação, Arthur recebeu o resultado negativo para covid-19, acalmando a mãe e as equipes médica e de enfermagem. Ainda inconsciente, o menino saiu da UTI destinada à doença e voltou para a unidade de tratamento intensivo dos demais pacientes. Raquel, então, passava o dia ao lado do filho e voltava à noite para Cachoeirinha.
Cinco dias depois, porém, a Vigilância Sanitária de Cachoeirinha ligou para a família informando que o teste feito no Padre Jeremias havia positivado. Na mesma hora, a mãe avisou a equipe do Clínicas. Arthur voltou a ser isolado. Uma revisão no processo apontou a troca de exames no hospital de Porto Alegre. Na verdade, o menino tinha covid-19. Segundo o chefe da Gerência de Risco do HCPA, Ricardo Kuchenbecker, foi uma falha grave, mas pontual.
— Ocorreu uma falha no processo de, pelo menos, 20 etapas entre pedir o exame e entregá-lo. A partir deste caso, revisamos todo o processo e fizeram melhorias. As seis equipes que cuidaram do menino realizaram testes e nenhum funcionário ou paciente que esteve próximo ao Arthur teve covid-19. Durante o período em que o menino ficou na UTI normal, permaneceu com o mesmo tipo de atendimento que teria na área destinada à doença — justifica.
Ao saber que o filho estava com covid-19, Raquel não deixou mais o Clínicas. Foram 35 dias sem retornar para a casa onde moram também as filhas Caroline, 24 anos, e Antônia, 13 anos, e a neta (filha de Caroline) Maria Eduarda, dois anos. As refeições foram feitas dentro do hospital. Por vezes, a filha trazia comida para a mãe. Em outras, as próprias enfermeiras doavam algum lanche para Raquel. As poucas horas de sono ocorreram sempre na poltrona ao lado da cama do menino.
— Ele foi só piorando, mesmo quando o trocavam de posição várias vezes. Em muitas delas, meu filho era deixado de bruços para respirar melhor. Agradeço à enfermagem da UTI, principalmente, enquanto ele ficou na ventilação mecânica. Lembro da enfermeira Sabrina me dando força e falando comigo. Foi muito importante para superar aquele momento de dor — conta.
O pior momento de toda a internação ocorreu na véspera da Páscoa. Arthur estava há 10 dias internado e seguia febril. Os médicos liberaram a professora para ver a família na noite de sábado e almoçar com as filhas no domingo. Eles, porém, disseram à mãe que o quadro de Arthur poderia se tornar irreversível. Antes de sair, Raquel decidiu ter uma conversa com o filho, mesmo entubado. Ela chora ao lembrar daquele momento:
— Fui à beira da cama dele e falei "meu filho, se for a tua vontade partir, vai tranquilo. Vamos sentir, mas você não ficará sofrendo. Mas se for a tua vontade ficar entre nós, luta". Não dormi naquela noite, com medo de que me ligassem com uma notícia ruim.
Para a alegria de Raquel e surpresa das equipes médicas, Arthur começou a reagir no domingo de Páscoa. A febre cedeu e, 10 dias depois, ele foi retirado da entubação. Professora da Internação Pediátrica, do Serviço de Pediatria do HCPA, a médica Sandra Helena Machado explica que o menino respondeu à ventilação mecânica. Passados os 22 dias de UTI, ele permaneceu isolado num quarto para recuperar os déficits motores obtidos durante a infecção.
— Arthur recomeçou a andar e sentar. Aos poucos, voltou a fazer coisas que fazia antes de internar. Inclusive, não foram mais necessários os remédios psiquiátricos que ele recebia. Ficamos muito feliz de entregá-lo à mãe. Foi um presente de Dia das Mães que pudemos oferecer a ela — resumiu a pediatra.
Por ter ficado semanas na cama, o menino perdeu parte do cabelo da cabeça. Na volta para casa, perguntou a Raquel porque não poderia voltar à escola. A mãe, então, explicou em detalhes o que havia ocorrido. Arthur compreendeu a situação. Aluno do terceiro ano do Ensino Fundamental, mas com dificuldades de acompanhar o ritmo, ele também frequenta uma escola de atendimento especializado e faz natação e terapia ocupacional uma vez por semana.
Antes das duas internações mais recentes, ele ingeria 12 medicações diárias - 20 comprimidos, no total. Tinha dificuldades na fala, usava fraldas 24 horas por dia, dependia de ajuda para o banho e também para se alimentar. Na volta para casa, passou a tomar apenas sete medicamentos. E isso, acredita Raquel, tem ajudado o menino a voltar a ser independente, como foi até os seis anos. Há uma semana, por exemplo, ele não usa fraldas.
Até os três anos e meio, Arthur era considerado uma criança sem problemas de saúde. Como o comportamento agressivo foi aumentando, a mãe o levou ao pediatra, ao neurologista e, por fim, à psiquiatria. Ao quatro anos, já com acompanhamento médico no Hospital de Clínicas, o menino recebeu o diagnóstico de bipolaridade. Com seis, recebeu o diagnóstico de transtorno opositivo-desafiador (TOD) e foi internado pela primeira vez no Hospital de Clínicas para ajustar a medicação indicada. Foram quatro internações nos últimos quatro anos, sempre para alterar os medicamentos, por períodos que variaram de 15 a 35 dias de hospitalização. A quinta vez, por conta da covid-19, foi a mais grave.
— Avisei parentes, amigos e o grupo de pais de autistas de Cachoeirinha. Foi uma corrente de orações, envolvendo todas as religiões. Tenho certeza que isso acabou ajudando na recuperação do meu filho — acredita Raquel, formada em Magistério e que deixou de trabalhar fora para cuidar de Arthur.
Depois da alta, o menino seguiu usando uma sonda nasogástrica por duas semanas, que foi retirada na consulta de revisão, na segunda-feira passada. Na próxima sexta-feira (29), haverá consulta com o psiquiatra. Arthur apresentou um quadro mais agressivo na semana passada, mas não teve convulsões — situação que costumava ocorrer até cinco vezes por dia, antes da covid-19. Raquel comemora a nova fase do menino.
No dia das fotos para esta reportagem, Arthur usou um abrigo homenageando o Homem de Ferro. Apaixonado pelos super-heróis das histórias em quadrinhos, ele usou um moletom com a escrita"The Invincible", que em português significa O Invencível, expressão capaz de definir o menino que a exibia.