Uma análise nos 20 áudios mais compartilhados em grupos públicos de WhatsApp entre os dias 24 e 28 de março identificou que cinco deles continham conteúdo duvidoso, negando a gravidade da covid-19. Desenvolvido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pela Universidade de São Paulo (USP), o estudo deu números a uma pandemia que corre em paralelo à do coronavírus — a das notícias falsas.
Os pesquisadores investigaram 2,1 mil áudios que circularam em 522 grupos do aplicativo, monitorados pelo projeto Eleições Sem Fake, da UFMG. Parte das mensagens desconfia das mortes pela doença e estimula que a população retome suas atividades, contrariando recomendações das autoridades médicas mundiais. Esse fenômeno preocupa a comunidade científica e plataformas de redes sociais. Recorrentes em períodos eleitorais, as mentiras, desta vez, podem custar vidas.
— Negar fatos relacionados ao coronavírus significa colocar em risco sua própria saúde, a de quem você ama e a daqueles que você nem sequer conhece. Realmente queremos carregar essa culpa? — diz Cristina Tardáguila, diretora-adjunta da Rede Internacional de Fact-Checking (IFCN, na sigla em inglês).
Por ora, as mentiras mais comuns em todos os países estão relacionadas a curas milagrosas da covid-19, segundo Cristina. No Brasil, contudo, a análise da UFMG e da USP mapeou também a politização das notícias falsas, inflamadas após discursos negacionistas do presidente Jair Bolsonaro.
— Era de se esperar a difusão de conteúdos sobre medicamentos falsos, que costumam ser compartilhados pelas pessoas em momentos de pânico. Mas, para além disso, as mensagens estão seguindo uma linha política — afirma o professor da USP Pablo Ortellado, coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital.
A plataforma de checagem Aos Fatos constatou o mesmo fenômeno. Na primeira análise de seu monitor de desinformação em tempo real, lançado na semana passada, a equipe avaliou os 50 tuítes sobre cloroquina mais compartilhados em português. Antes de Bolsonaro recomendar o uso do medicamento para o tratamento da covid-19, seis deles tinham conteúdo inverídico. Depois do pronunciamento do presidente, subiram para 16. Testada em vários países para o combate à doença, a droga ainda não teve sua eficácia comprovada.
— Estamos diante de uma crise de desinformação inédita, um fenômeno global e simultâneo que está acontecendo em diversos países. Boatos clássicos, de métodos de prevenção e curas milagrosas, viralizam em todos os lugares onde há casos da doença. Já a politização da pandemia acontece em alguns países, como o Brasil e os Estados Unidos. Quanto mais polarizada estiver a sociedade, maior a disputa política em torno da pandemia, com uso de elementos da saúde como instrumento de persuasão e confusão — resume a diretora-executiva da Aos Fatos, Tai Nalon.
Para combater a desinformação diante da crise sanitária, a IFCN lidera, desde 24 de janeiro, o mais amplo projeto de checagem do mundo, batizado de CoronaVirusFact. Ao todo, 77 organizações em mais de 60 países e 43 línguas já desmascararam 2.146 mentiras sobre a pandemia — 90 delas, no Brasil.
Responsável pela iniciativa, Cristina afirma que o Brasil está apenas no início do processo de mentiras e boatos sobre o coronavírus, uma vez que a pandemia aterrissou no país há pouco mais de um mês. Na Ásia e na Europa, a população convive com a doença desde janeiro.
Em seu mapeamento global, a IFCN identificou seis ondas de desinformação (leia mais abaixo). Elas incluem mentiras sobre a origem da doença, falsos alertas sobre o fechamento de países e supostas receitas caseiras para se prevenir. Nos Estados Unidos, por exemplo, viralizou uma mensagem orientando as pessoas a ingerir água sanitária para evitar a doença.
Por representar risco à saúde, a desinformação tem tido sua disseminação combatida pelas principais plataformas digitais. Segundo pesquisadores, Facebook, Twitter e YouTube estão atuando rapidamente para remover informações falsas sobre o coronavírus, uma política celebrada após a criticada tolerância das empresas ao compartilhamento de mentiras durante campanhas eleitorais.
Em nota, Facebook e Instagram informaram que tem atuado para deletar "informações incorretas relacionadas à covid-19 que podem contribuir para danos físicos iminentes". Desde janeiro, a empresa apaga conteúdos sobre falsas curas, tratamentos, disponibilidade de serviços e gravidade do surto. Recentemente, também removeu postagens defendendo que o distanciamento físico não contribui para impedir a propagação do vírus.
Entre as mais recentes publicações eliminadas, está um vídeo publicado por Bolsonaro. Na gravação, o presidente afirma que a cloroquina está "dando certo em todo lugar" para tratar a covid-19. Segundo o Facebook, a fala infringiu as regras de uso diante da pandemia.
Antes, o Twitter também havia excluído duas mensagens do presidente. Para a plataforma, o material tinha potencial de "colocar as pessoas em maior risco de transmitir covid-19". Em seu blog, a empresa afirma que continuará "a priorizar a remoção de conteúdo quando houver a presença de um incentivo claro a uma ação que possa representar um risco direto para a saúde ou bem-estar das pessoas". Já o Google tem privilegiado em suas buscas informações de fontes oficiais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS).
O surto de desinformação também motivou o Comprova, iniciativa colaborativa de checagem que reúne 24 veículos brasileiros, incluindo GaúchaZH, a lançar uma ediçã extra. Desde a semana passada, jornalistas de todo o país se reuniram para monitorar redes sociais e aplicativos de mensagem, investigando informações duvidosas sobre o coronavírus.
— Conteúdos falsos podem causar sérios danos e nem sempre as verificações chegarão às pessoas certas a tempo. É hora das pessoas aproveitarem também a farta oferta de informação de qualidade, nos sites, rádios, TVs e jornais, boa parte dela gratuita, como uma vacina contra a desinformação — pontua Sérgio Lüdtke, editor do Comprova.
Para evitar ser contaminado pela boataria, pesquisadores pedem que as pessoas não compartilhem conteúdos sem ter certeza sobre a sua veracidade. E, quando receberem materiais duvidosos, questionem a procedência do conteúdo ao emissor, contribuindo para que ele mesmo chegue à conclusão de que está sendo enganado.
— Normalmente, quando pensamos no problema da desinformação, acusamos os produtores. Mas eles só têm uma parcela de responsabilidade. O restante é de quem compartilha — conclui Ortellado.
As seis ondas de desinformação sobre o coronavírus, segundo a International Fact-Checking Network (Rede Internacional de Fact-Checking)
- Boatos sobre a origem da doença. Entre as falsas teses, está a de que o vírus foi criado em laboratório pela China.
- Falsos vídeos de pacientes morrendo pela covid-19. Na realidade, eram gravações de pessoas tendo ataques epiléticos, entre outros.
- Métodos de prevenção e curas milagrosas, incluindo sopa de alho e chá de cogumelo. Na Índia, viralizou uma mensagem sugerindo que as pessoas tomassem banho de urina de vaca para se proteger — o animal é sagrado no país.
- Mentiras sobre o extermínio de pessoas contaminadas na China, mostrando falsas imagens de satélite de Wuhan, epicentro da pandemia.
- Mensagens de supremacia racial e religiosa. Na África, foi compartilhado que negros são imunes à covid-19. Em países de maioria muçulmana, que pessoas convertidas ao Islã não seriam contaminadas.
- Informações inverídicas e falsos alertas sobre fechamento de países e cidades para o controle do contágio.