Mesmo com boa parte da população mundial vivendo sob restrições de deslocamento, um grupo específico de pessoas desperta um peculiar interesse. Os brasileiros residentes na chinesa Wuhan, epicentro da pandemia de coronavírus, e que foram repatriados em aviões enviados pelo governo federal estão agora passando, pelo menos, por sua terceira quarentena em dois meses, em diferentes locais.
É o caso do piloto de avião Mauro Hart, 59 anos, gaúcho de Venâncio Aires. Depois de 15 dias de isolamento na China, fase iniciada no final de janeiro, ele foi um dos resgatados pela Força Aérea Brasileira (FAB). Levado para Goiás, ficou hospedado por outros 15 dias na base militar de Anápolis. Sem registro de casos de contágio depois de intenso monitoramento médico, o grupo foi liberado em 23 de fevereiro. Hoje, Hart está em confinado em casa, com a família, em Natal, no Rio Grande do Norte, onde se radicou há anos. Por conta da profissão, o piloto se divide entre o Brasil e China, alternando semanas de trabalho e de folga.
A "liberdade" durou cerca de um mês para Hart, que aproveitou para visitar a mãe e os irmãos no Rio Grande do Sul. Agora, ele aproveita a dupla experiência prévia para encarar a terceira etapa de restrições. Mora com a esposa, a filha, de nove anos (que tem necessidades especiais), a afilhada e a babá, que ajuda no cuidado com as pequenas. Tem saído apenas para ir ao supermercado, uma ou duas vezes na semana. Se precisa de algo da farmácia, solicita telentrega. Auxilia a afilhada nos deveres escolares e se atualiza com material enviado pela empresa. Dedica-se também a um de seus hobbies: cozinhar. Gosta de preparar carreteiro, galinhada, yakisoba. Uma lista, preparada diariamente, dita todos os afazeres dos adultos e das crianças, uma prática que é adotada mesmo quando Hart está a milhares de quilômetro de distância, na Ásia.
— É muito importante estabelecer uma rotina, nem que seja com "acordar a tal hora, tomar café, fazer exercícios, ligar para os amigos". Outro dia, eu e mais três amigos fizemos uma videoconferência para conversar. Tenho amigos espalhados pelo mundo, já estou acostumado — conta o gaúcho, em entrevista por telefone.
Em Wuhan, quando o transporte público foi interrompido, em 23 de janeiro, ele realizou seu último voo até Pequim. Cogitou que não poderia nem retornar, mas conseguiu. No trajeto de volta, Pequim-Wuhan, havia apenas três passageiros na aeronave. No dia seguinte, o aeroporto fechou. Em um primeiro momento, os moradores de Wuhan podiam se locomover em seus carros particulares, mas logo isso também ficou proibido. As medidas se intensificaram em rigor, ao mesmo tempo em que aumentava a tensão do piloto, preocupado com uma eventual carestia de alimentos. Quando ocorreu a determinação para que a população não saísse mais às ruas, Hart já estava de volta ao país natal.
Na quinzena de observação em Anápolis, o clima era bem mais ameno. Em um local seguro, os repatriados se submetiam a exames e podiam realizar atividades físicas e culturais.
— A alimentação não era uma preocupação. O único problema era esperar o tempo passar — recorda.
Na China, o direito coletivo está sobre o direito individual. Aqui deveria ser assim.
MAURO HART
Piloto de avião que esteve em Wuhan no começo da pandemia
Hart temia pelo estado de saúde — não queria ser o responsável por trazer a doença ao Brasil, desabafa. Mesmo depois de diversos testes negativos, até hoje, segundo ele conta, "algumas pessoas dão um passo para trás quando sabem que vim de Wuhan".
Concluída a quarentena programada, o grupo se dividiu e tomou o caminho de suas residências em diversos Estados do país. Conforme a situação piorava, com o coronavírus rompendo fronteiras, Hart já imaginava o perigo atingindo o Brasil.
— Fiquei muito preocupado vendo o que aconteceu na Itália e na Espanha. Temos uma cultura mais ou menos parecida com a deles. O asiático, diferentemente, em geral é bastante obediente e resiliente. O governo manda e ele fica em casa. Na China, o direito coletivo está sobre o direito individual. Aqui deveria ser assim, mas algumas pessoas acham que o direito individual está acima de tudo, do bem e do mal. Nossa quarentena, aparentemente, é mais relaxada — observa.
A vida pode mudar repentinamente. E, às vezes, a gente não está preparado para isso.
MAURO HART
Se cada um fizer a sua parte, acredita Hart, será possível conter o avanço descontrolado da pandemia, mas os próximos dias, na sua opinião, deve ser "bem duros".
— Tem que ter bastante estrutura para suportá-los, principalmente estrutura psicológica. Nem todo mundo está preparado financeiramente ou psicologicamente para enfrentar esse isolamento. Para algumas pessoas, vai ser bem difícil, e para outras, vai ser apenas chato. Todo mundo vai perder. Mas vai passar.
Até aqui, ele relata já ter aprendido importantes lições:
— A vida pode mudar repentinamente. Pode dar uma guinada inesperada no segundo seguinte, no minuto seguinte, no dia seguinte. E, às vezes, a gente não está preparado para isso.