A pior enchente da história de Porto Alegre completa um mês nesta segunda-feira (3). Com elevações e recuos do Guaíba, a cidade segue imersa no desafio de recompor os danos provocados pela maré barrenta que invadiu ruas e cercou prédios. O trabalho será árduo e prolongado: montanhas de móveis, roupas e lama retiradas de casas e empresas ocupam calçadas e canteiros da Zona Sul à Zona Norte, do Centro Histórico ao 4º Distrito. Há mil residências sem luz e o abastecimento de água segue intermitente em alguns bairros.
No primeiro domingo (2) de sol forte e temperatura elevada desde o início de um maio em que os dias se repetiam numa espiral de chuva e agonia, os porto-alegrenses tentaram recomeçar a vida, seja recuperando o que restou da inundação, seja passeando por praças e parques. Enquanto 8.756 pessoas seguiam desabrigadas e 12 bloqueios impediam a passagem de veículos, pedestres de cuia na mão e esportistas apressados dividiam espaço com garças dando rasante nas quadras inundadas da orla semidestruída.
O contraste mostra que ainda vai demorar para a Capital retornar à normalidade. No Sarandi, a inundação persiste, alcançando mais de um metro de altura. Para amenizar a angústia de quem abandonou tudo correndo, o Exército conduz moradores de caminhão ou bote até as casas ainda submersas para resgatar algum pertence ou apenas confirmar o tanto que perderam na tragédia. O bairro concentrou a maior parte da população atingida no município, com 26 mil pessoas afetadas, e testemunha um drama que parece não ter fim.
— Moramos na (vila) Asa Branca, e estamos há um mês fora de casa. Queria ver o que sobrou, mas nos explicaram que ainda não dá pra chegar lá porque as ruas são muito estreitas e a água ainda está pela altura do peito — lamentava a desabrigada Aline Lopes, 37 anos, ao lado do marido, Marco Antônio Ortiz, 53, enquanto observava outros moradores formarem fila para serem levados até seus antigos endereços.
A prefeitura estima perdas de até R$ 8 bilhões em razão da catástrofe e mobiliza equipes para tentar desmontar as pilhas de lembranças de uma vida que já não existe mais. Até a noite de sábado (1º), foram retiradas 25,6 toneladas de resíduos e lodo das ruas pelo Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU). No domingo, as equipes estavam em sete bairros tentando restituir à cidade sua antiga forma. Na Vila Farrapos, uma retroescavadeira erguia restos de mobília e os lançava dentro de um caminhão.
Parte desse material pertencia ao mecânico Márcio Dutra, 38 anos, que a um só tempo perdeu a casa e a oficina de onde tirava o sustento familiar.
— Não temos mais nada. Agora, a intenção é conseguir um novo lugar para morar e trabalhar. Aqui não dá mais — lamentou.
No Centro Histórico, uma linha contínua e sem fim circunda os prédios, num registro informal do tamanho da inundação. Há sarjetas alagadas e uma lama que teima em não secar. As dificuldades de retomada estão expostas na fachada de vidros quebrados do Centro Administrativo da prefeitura e no espelho d’água imundo do Tribunal de Contas do Estado.
Na Praça da Alfândega praticamente vazia, nove caminhões-pipas auxiliam na retirada do lodo. Geradores garantem energia nos prédios e bombas sugam a água acumulada em porões, poços de elevador e estacionamentos subterrâneos.
Quase na esquina da Siqueira Campos com Caldas Júnior, o comerciante Dorvalino Carvalho, 55 anos, fazia a quinta limpeza consecutiva da Carequinha da Sorte, lotérica e tabacaria que mantém há 28 anos, nos quais jamais ficou um único dia sem ir até a loja.
— Antes chovia e, quando muito, alagava a rua. Meia hora depois baixava. Agora fiquei 25 dias sem poder vir aqui. Fico me perguntando se vale esse esforço todo para perder tudo de uma hora para a outra — desabafa Carvalho.
O impacto econômico da enchente sobre o município foi brutal. Dados da prefeitura indicam que pelo menos 45,9 mil empresas de pequeno, médio ou grande porte foram atingidas pelo avanço da água — 29 mil delas do setor de serviços.
A tragédia se insinuou aos porto-alegrenses no dia 2 de maio, quando o nível do Guaíba, empurrado pela chuva torrencial que despencara em rios como o Taquari, o Caí e o Jacuí, subiu sem parar e ultrapassou a cota de inundação calculada em três metros no Centro Histórico. A água marrom cobriu o piso do Cais Mauá, mas ainda se mantinha do lado de fora do muro erguido para proteger a população de uma eventual cheia.
A contenção durou pouco. Por meio de frestas em comportas, através de diques de contenção e por dentro da canalização pluvial, que inverteu o sentido e passou a jorrar água dentro da cidade em vez de drená-la, o fantasma da enchente de 1941 revisitou a Capital com ímpeto redobrado a partir da sexta-feira, dia 3.
A água avançou sobre Porto Alegre como se fosse terra de ninguém. Na Zona Norte, uma das áreas mais atingidas, o Guaíba extravasou do leito e começou a encher rua após rua. Uma imagem de satélite obtida na terça-feira seguinte (7) revela quão profundamente o lago penetrou na malha urbana: a enchente barrenta cruzou por uma, duas, três quadras e assim sucessivamente, até somar 30 quarteirões e cerca de quatro quilômetros desde a margem.
O Rio Gravataí e arroios próximos confluíram para a região, transformando bairros em zonas tomadas de água e desertas de gente. Mais ao sul, no Centro, na Cidade Baixa e no Menino Deus, a população fugia a pé, de carro e em embarcações que se tornaram a única forma de percorrer as ruas convertidas em rios.
O desastre climático afetou de alguma forma 39 mil edificações e 157 mil pessoas — o equivalente à população de um município como Cachoeirinha e superior ao número de habitantes de 97% dos municípios gaúchos. No ápice da enchente, havia 14,3 mil moradores alojados em 135 abrigos. Um total de 86 praças foram alagadas, 1.081 quilômetros de vias públicas ficaram obstruídas, 41 escolas municipais e 31 estabelecimentos de saúde foram atingidos, entre eles dois hospitais.
O aeroporto colapsou, a rodoviária naufragou e um corredor viário precisou ser aberto para não haver desabastecimento. No pior momento, 134 mil imóveis ficaram sem luz, 70% da cidade ficou sem água e muita gente ficou sem esperança.
— Queria resgatar meus documentos. O resto, perdi — resigna-se o marceneiro Luís Oliveira, 33 anos, enquanto aguardava carona de militares para retornar à casa submersa no Sarandi.
Os números da enchente
As vidas
- 157.701 pessoas afetadas
- 135 abrigos
- 14.600 desabrigados (8.756 neste domingo)
- 6.639 animais recolhidos
Os negócios
- 45.970 empresas impactadas
- 29.048 de serviços
- 11.320 de comércio
- 5.496 indústrias
- 106 de outros tipos
A estrutura
- 39.422 edificações
- 1.081 km de vias públicas
- 186 praças
- 22 unidades de saúde
- 2 hospitais
- 3 farmácias populares
- 4 clínicas da família
- 41 escolas municipais
- 22 mil alunos da rede municipal ainda sem aula
- 25.694 toneladas de lixo recolhido