O Mercado Público de Porto Alegre vai fazer 150 anos na próxima quinta-feira (3), no meio de sua mistura única de cheiros, sabores, cores, culturas e de gente. Estima-se que 100 mil pessoas passem por dia pelo prédio, que teve as primeiras paredes erguidas na década de 1860, antes mesmo da proclamação da República e da abolição da escravatura. Entre bancas de peixes, frutas, verduras, incensos, cachaça, erva-mate e centenas de outros produtos, também tem 1,2 mil trabalhadores servindo no velho Mercado.
Para homenagear o aniversariante e o povo que o faz, GaúchaZH conta a história de quatro pessoas que ajudam a construir, dia após dia, as memórias de um dos locais mais emblemáticos da Capital.
Pai de santo em um "quilombo de várias etnias"
Pai Paulinho do Xoroquê usa anatomia humana para explicar uma teoria. Para ele, o Mercado Público é o coração de Porto Alegre, vital, imprescindível para a vida da cidade. E quem dá energia para que pulse é o Bará.
— Ele fica ali no meio ali, olhando tudo. Porque ele é movimento, ele que movimenta tudo isso aqui — explica o pai de santo.
No centro do prédio, indicado por um mosaico com imagens de chaves no chão, fica a morada desse orixá que tem o poder de abrir caminhos — o objeto em que a divindade está assentada, chamado de ocutá, teria sido enterrado bem no cruzamento dos quatro quadrantes. É a partir desse ponto que Pai Paulinho realiza há 18 anos eventos no Mercado Público, local que acabou ganhando grande importância para as religiões africanas. Até porque boa parte dos materiais usados em rituais é obtida nas bancas.
Pai Paulinho vai pelo menos uma vez por semana ao Mercado, onde troca as oferendas à escultura em tamanho humano do orixá, que fica em uma sala no segundo andar. O homem de 52 anos é abordado várias vezes para dar a bênção, tendo as mãos beijadas pelas pessoas. Garante que todos o respeitam ali, independentemente de religião.
— Aqui todo mundo é irmão, seja negro, branco, evangélico, católico, pobre, rico, quem tem banca, quem é empregado. O Mercado é um quilombo com várias etnias.
A história dele com o velho Mercado começou bem antes de levar para lá, pela primeira vez, um barco para Iemanjá. Lembra do bolinho inglês e da garrafa em miniatura de refrigerante que ganhava da avó, quando a acompanhava do Mont'Serrat, de ônibus, para as compras, ainda criança. Recorda de rodas de samba também.
Ele quer que muita gente ainda forme memórias bonitas como as dele ali. No aniversário do Mercado, vai desejar "muito axé, força, prosperidade e resistência".
— O Bará vai nos dar o caminho e a direção certa, com certeza teremos mais muitos 150 anos pela frente.
O garçom mais popular do Mercado Público
No restaurante mais antigo de Porto Alegre, trabalha um garçom que bem podia ter sido tombado Patrimônio Histórico com o Mercado Público. Com 72 anos, José Carlos Lopes Tavares, popular Zezinho, serve chopes no Gambrinus desde 1976. Ainda antes disso, bateu ponto em outras bancas do mercadão.
Ele começou a trabalhar no prédio em 1962: foi balconista na Banca L e, depois, açougueiro na Banca G. Reza a lenda que ali vendeu rabada como filé mignon.
— O cliente achou: "ai, que filé macio..." Era uma rabada — brinca, caindo na gargalhada.
Essa é a marca registrada do homem de 1m60cm de altura e 56 quilos, natural de Hulha Negra: o bom humor. Ele não para de fazer piada. E amigos.
— Eu recebo presentes e cartão-postal do mundo inteiro: da Rússia, da China, do Japão. Tenho pilhas de cartões, alguns de 40 anos atrás, de clientes agradecendo a gentileza.
O garçom gosta da democracia do Mercado, onde é possível comprar jamón ibérico por R$ 490 o quilo ou mortadela por R$ 10. Acha que a diversidade de públicos que circulam por ali traz "só coisa boa". E garante que o atendimento que presta é igual a todos os clientes, independentemente do quanto eles podem gastar no restaurante.
— Quem tem Boeing e quem estaciona o Fusquinha aqui na frente é tratado da mesma forma.
Feliz de trabalhar no Mercado e, especialmente, no centenário Gambrinus (conhecido pelo bolinho de bacalhau, o restaurante tem 130 anos), lamenta apenas uma coisa: alergia a peixe.
— Vê se pode, pobre com alergia a peixe.
Nesses mais de 40 anos de casa, também nunca provou um chope do restaurante. Não é muito chegado em bebida alcoólica. Um dia, conta, "uns poderosos" tomaram alguns bons Beaujolais franceses no local, mas como sobrou meia garrafa do vinho, mandaram Zezinho levar. Ele chegou em casa e encomendou um sagu para a esposa Laureci, com quem está casado há mais de 40 anos.
Se depender do garçom, mesmo aposentado, vai seguir comemorando com o Mercado muitos aniversários.
— Se consigo continuar trabalhando, atendendo os clientes bem, eu continuo. Tem que ir à luta para sobrar para as gatinhas, senão não sobra — brinca, caindo na gargalhada de novo.
Que dona Laureci não ouça — nem leia.
Criada e apaixonada pelo Mercado
À frente da Banca Central, Valéria di Lorenzo, 46 anos, tem dificuldades para apontar a primeira memória do Mercado Público.
— Acho que estava na barriga da minha mãe — ri.
É que o pai dela, Biagio di Lorenzo, já era sócio do negócio quando ela nasceu, em 1972. Ele e mais dois irmãos vieram da Calábria, na Itália, o que, ela diz, justifica o jeito de trabalhar "meio gritão" na banca de queijos, salames, frutas secas e outras especiarias.
Valéria cresceu brincando na câmara fria e ajudando no caixa — antes da caixa registradora de botões gigantes, lembra que o dinheiro era depositado em uma sacola mesmo. A memória mais doce, porém, ela não tem dúvidas de qual é:
— Adorava quando o pai podia me dar um tempinho e a gente ia na Banca 40 tomar um caldo de frutas. Hoje tem o mesmo caldo de frutas, e isso me traz uma memória afetiva que chega a emocionar — conta.
Por problemas de saúde, seu Biagio, 74 anos, passou a sua parcela de responsabilidade sobre a Banca Central às filhas e à esposa, que comandam dez funcionários homens. Algo que seria incogitável alguns anos atrás: Valéria lembra que eram raríssimas as mulheres trabalhando no Mercado Público. Comemora que hoje a presidente da Associação de Permissionários do Mercado é uma mulher — a primeira da história —, e que há mulheres desempenhando até funções tidas como masculinas, como em açougues.
— A gente tem condições de fazer um bom trabalho em todos os âmbitos. Ficar no mercado das 5h às 20h é cansativo, é puxado. Eu uso meia de compressão para aguentar as dores, porque a gente cansa. Mas como diz na minha terra, "quando le cose sono fate con amore non si perde niente", quando as coisas são feitas com amor, nada se perde.
Barbeiro faz aniversário com o Mercado
No segundo andar do Mercado Público, em uma sala de 12 metros quadrados protegida pela imagem de Nossa Senhora de Fátima, o barbeiro Carlos Jenecy de Oliveira vai fazer aniversário no mesmo dia do Mercado Público, na quinta-feira (3). Completará 79 anos, a maior parte deles —47 — vivida ali na Barbearia Central.
Pergunto quem está mais enxuto.
— O Mercado tá bem, né?! — diverte-se.
Mas Jenecy não aparenta a idade que tem. E sua barbearia também parece congelada no tempo. Alguns dos equipamentos o acompanham desde os anos 1970, como as cadeiras reclináveis com estofado marrom de mais de 80 anos.
Já sentaram-se nelas para fazer a barba os ex-governadores Leonel Brizola e Olívio Dutra — no bigode, Jenecy não mexeu. Hoje não tem uma freguesia tão famosa, mas é composta por amigos.
Ouvindo música gauchesca em um rádio velho, o barbeiro colorado fala bastante de futebol, vê alguns clientes dormirem enquanto faz o serviço (e até roncarem) e também ouve um bocado de problemas. Faz vezes de terapeuta para a freguesia.
— O cara desabafa, né, coisa séria... Sábado atendi um senhor, primeira vez na barbearia, que disse: "tu sabe o que é chegar em casa, botar a chave no miolo da fechadura e não abrir a porta? A mulher me tocou pra fora". Eu fiquei com pena.
Escuta pacientemente enquanto faz barba e cabelo, passa no rosto do cliente uma solução com álcool e ervas, que compra nas bancas do Mercado mesmo, e vê ele ir embora.
— Não tem o que fazer, só ouvir.
Problemas, Jenecy já tem os seus. O que lhe preocupa hoje são as conversas sobre o futuro do Mercado — a gestão de Nelson Marchezan está elaborando um projeto de concessão do Mercado Público. Não sabe se vai poder continuar trabalhando no local, que considera sua segunda casa, com família e tudo.
— Eu estou em casa no final de semana e já estou louco para voltar.