Com o domingo de sol e calor lá fora, o parque se encheu de gente a circular em meio ao fumacê das churrascadas. No fundo do Piquete Chimango, protegido da algazarra, Jorge Carrão espreitava o movimento por baixo da aba do chapéu. O que via não lembrava em nada o primeiro Acampamento Farroupilha de que participou, 37 anos atrás.
— Foi em 1982. O acampamento eram quatro ou cinco barracas com toldo. Nós vínhamos de cavalo, na quinta-feira, e ficávamos fazendo churrasco e chimarrão, esperando para desfilar no domingo, porque o 20 de Setembro não era feriado. Depois do desfiles, íamos embora. O acampamento surgiu assim, de forma espontânea. A gente não pensava que ia virar o que virou — afirma Jorge.
O que o acampamento virou é uma espécie de cidade campeira que dura (oficialmente) duas semanas, tem 350 piquetes, oferece uma frenética atividade comercial, atrai um milhão de visitantes e oferece infraestruturas antes inimagináveis, como energia elétrica, água encanada e banheiros.
— No começo, não tinha nada, eram só uns gaúchos e seus cavalos. O meu pai pegava água do Guaíba para fazer chimarrão. A gente tinha vergonha de sair na rua de bombacha, porque era alvo de chacota. Éramos tidos como grossos e antiquados — recorda Jorge.
Ele conta que o piquete foi fundado no bairro Glória em 1979, por seu pai, o policial militar José Carrão. Três anos depois, começou a acampar no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho. Jorge reclama para o piquete a condição de fundador e mais antigo do evento (embora o site da prefeitura afirme haver notícia de gaudérios no local um ano antes, em 1981). Em 1991, quando José morreu, o filho herdou o cargo de patrão. Hoje com 64 anos, afirma ter participado de todos os 38 acampamentos realizados desde 1982.
Com a vantagem de quem testemunhou a história, avalia que as mudanças ocorridas no parque ao longo do tempo tiveram aspectos positivos e negativos.
— Entrou o comércio, os cavalos foram proibidos, foi fugindo da tradição. Perdeu a essência. Antes era mais autêntico, era o gaúcho mesmo. Agora ficou estilizado, todo mundo bota bombachinha e é gaúcho. Mas a mudança também foi para melhor, porque agora tem água, tem eletricidade, tem banheiro, o comércio facilita. Mas tem gente que não assimilou. Meu pai achava que barraca sem luz é que era bom.
Jorge garante que continuará montando seu piquete pioneiro todos os anos, enquanto estiver vivo. Para ele, é o momento alto do ano. Quando ainda não estava aposentado, sempre tirava férias em setembro para ficar acampado. Uma vez não conseguiu esse período do ano e fugiu do serviço. O chefe mandou um funcionário procurá-lo no parque. Jorge foi descoberto, mas mesmo assim não voltou ao batente.
Acampamento é um assunto tão sério que ele comprou um ônibus 1980, adaptado com chuveiro e camas, para abrigar a família durante a duração do evento. Neste ano, ele estacionou o veículo ao lado do parque em 22 de agosto e, desde então, dorme ali com a mulher, Taís Schappo, 38 anos, e com dois dos oito filhos. Só devem ir embora após 22 de setembro.
Héwyllyn Carrão, 20 anos, filha que está morando no ônibus ao longo do mês tradicionalista, trabalha no Centro e deixa o parque durante o dia. Mas volta para os churrascos e fandangos diários, que vão noite adentro.
— Nos outros anos eu não trabalhava, daí ficava o tempo todo no acampamento. Adoro. É o mês todo vivendo churrasco. É o que a gente faz no fim de semana, mas durante um mês inteiro — explica.
Taís, a mulher de Jorge, também virou uma apreciadora ferrenha das gauderiadas. Quando ela conheceu o marido, há duas décadas, era uma skatista e roqueira que só conhecia a vida da metrópole. A partir do relacionamento, rompeu com esse passado. Hoje só ouve música tradicionalista e aprendeu todas as lides campeiras: cavalga, castra e carneia animais, ordenha vacas. O filho, de 19 anos, vai no mesmo caminho: estreou no acampamento com nove dias de vida e hoje é gaiteiro.
Para o pioneiro patrão, não há vida melhor do que essa que ele e a família experimentam durante o período farroupilha, mesmo que tenham de abrir mão de algum conforto e dormir dentro de um ônibus.
— É a tradição. Está no sangue. Somos gaúchos 24 horas por dia — sentencia Jorge.