A luz acesa no convés denuncia que há vida a bordo da enferrujada embarcação Brasilândia. Atracada no cais próximo à ponte do Guaíba, a draga teve sua essência modificada: hoje é residência do passo-fundense Rudimar de Almeida Necher, 56 anos. Ele vive há seis meses no local — depois que o amigo com quem dividia apartamento na Cidade Baixa foi internado para tratamento para dependência química, teve uma breve passagem por uma ocupação de artistas no bairro Azenha até se mudar para a área portuária.
— Um militar da reserva me disse: "Tenho um lugar para ti". Ofereceu o barco para eu cuidar e poder trazer minhas coisas — conta. — Aqui é calmo. Na minha situação, não tem não gostar, levei uma rasteira da vida. Mas pior é estar embaixo da ponte — acrescenta, mirando a água e forçando a memória para lembrar da noite que dormiu na rua, no entorno da rodoviária.
Artista da cena musical noturna, abandonou o ofício devido a um acidente há dois anos, que comprometeu os movimentos de seu braço direito, restringindo também o trabalho com jardinagem.
A rotina na embarcação começa cedo, antes do nascer do sol. A silhueta do residente ribeirinho surge em meio ao mato que toma conta do local em que três barcos sucumbem à ação do tempo. Sem camisa, ele carrega garrafas com água coletada no prédio ao lado, aos pés da ponte do Guaíba — o banho também é um "empréstimo" do vizinho. A entrada e a saída do terreno se dá por um buraco na tela que cerca o porto.
— Peguei água boa. Não te preocupa, não vou passar café com água do Guaíba — exclama, sorridente, ao se aproximar do repórter e do fotógrafo de GaúchaZH.
Os cuidados com o barco não exigem grandes esforços. Duas cordas amarradas às cunhas de ferro mantêm a pesada estrutura ancorada. As janelas de madeira, maltratadas pelo tempo, têm grades. No temporal que atingiu Porto Alegre na metade de janeiro, o marujo à deriva se viu em apuros para manter as amarras.
— Cena de filme de terror — define.
Na cozinha sem luxo, há um fogão de quatro bocas e panelas velhas ao lado do bule sujo de café. A despensa quase vazia — inclui um vidro de pimenta, um pacote de café e arroz — é reflexo de quem não recebeu salário em 2019. O cheiro de óleo das embarcações incomoda o morador, que despreza também os peixes que vivem no entorno da morada.
Compositor e sonhador
Os poucos pertences eximem Necher da preocupação com furtos. A única porta com tranca é a que protege o dormitório e seus instrumentos musicais e intelectuais: Bíblia e um livro de teologia. Com passagem por sete faculdades e nenhum diploma, Necher tem como objetivo cursar Música na UFRGS.
O colchão de solteiro é suspenso sobre uma estrutura de ferro. Ao subir e descer da cama, não há como não esbarrar nos bongôs ou no prato da bateria que escoram o violão usado para compor. A vivencia no barco inspirou a canção Embarcação, na qual discorre sobre a rotina de quem vive só em meio ao Guaíba.
A solidão que demonstra na canção é sintoma da falta que sente das duas filhas, Daiane e Kessi, de 24 e 32 anos. Ambas ficaram em Passo Fundo após o divórcio. A música, sua paixão, teria sido um dos motivos para o fim da união de 14 anos.
— As músicas, a noitada... Eu passava quatro dias fora de casa, bebia. Um período complicado — relembra.
Como Necher é "analógico", a comunicação com as filhas se restringe ao WhatsApp de uma amiga.
Dentre inspirações das mais ecléticas, de Paco de Lucia a Deep Purple, ele não perde o desejo de chegar aos grandes palcos. Inquieto e otimista, acredita que um dia cantará ao lado do Pink Floyd:
— O Roger Waters tem intuição. Se ele me vir tocando, vai me escolher. Amo Pink Floyd. Eu sou Pink!
Um novo rumo
Enquanto o curso superior é um objetivo e subir em grandes palcos se trata de um sonho, Necher faz um curso de capacitação no Programa de Apoio ao Setor Vidreiro (PAV) — formado por um conglomerado de empresas do setor de serralheria e vidraçaria.
— Ele entrou aqui e já foi logo dizendo: "Sou o Rudimar e tenho uma proposta para te fazer. Não tenho como pagar o curso, mas posso trocar por serviço". Achei de personalidade e coragem — conta a diretora da PAV, Alessandra Sagenite Rodrigues.
Em poucos meses, Rudimar conquistou a equipe, com bom humor mesmo em condições adversas, e já tem feito serviços para clientes da distribuidora.