Arte e ciência confundem-se na mostra que ocupa o terceiro e quarto andares de um dos prédios da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) até o próximo dia 22. Retirados de corpos doados à instituição, os órgãos expostos na décima edição do Museu de Anatomia são dissecados por estudantes da universidade em atividades acadêmicas.
— Nessa peça, ficou o pulmão, o coração e a aorta. Quando a recebemos, também tinha os rins. Tiramos eles e aprofundamos um pouco (o corte) para expor os brônquios. Depois, colocamos um arame para abrir... Como se fossem asas — explica João Lins Maués, 20 anos.
Estudante do quinto semestre Medicina, ele foi responsável por dissecar, em parceria com um colega, um dos conjuntos expostos na mostra, que conta com mais de 70 peças. Monitor da Oficina de Anatomia, projeto de extensão realizado anualmente, sempre no segundo semestre, levou cerca de 20 horas preparando a peça — depois de pronta, ela recebeu um banho de glicerina para se manter conservada sem o desagradável odor do formol utilizado para a fixação.
Bisturis, tesouras cirúrgicas, pinças, serras e furadeiras são alguns dos objetos usados durante a oficina, que costuma atrair principalmente estudantes de Medicina interessados em trabalhar na área cirúrgica. O intuito didático da dissecação é permitir que os alunos possam entrar em contato com as estruturas corporais que conhecem pelos livros de anatomia — e com as quais muitos deles terão de lidar cotidianamente quando pegarem o diploma.
Normalmente, o resultado das atividades não é bonito: como os estudos são realizados por "camadas", o mais comum é que os corpos fiquem com aspecto retalhado, com várias partes à mostra. As peças que serão exibidas passam por um tratamento mais refinado para que os órgãos sejam mais facilmente identificados pelos visitantes — há placas informativas e tablets com informações junto aos trabalhos.
— A doação dos corpos foi o que fez com que a gente pudesse ter esse acervo todo. O que fazemos aqui é uma maneira de agradecer à comunidade. Procuramos convidar principalmente as escolas públicas para que os alunos tenham acesso a isso. Nas visitas de escolas, tem vários que vêm perguntar sobre a faculdade, se é de graça. Desperta a vontade de estudar — avalia a coordenadora do projeto, Andrea Oxley.
Espaço ficou pequeno, e mostra se mudou
Realizado há 10 anos, o museu teve suas primeiras edições dentro de um laboratório, para atender a uma demanda interna: matar a curiosidade de funcionários da universidade sobre os corpos utilizados pelos alunos em sala de aula (todos os cursos da área da saúde contam com disciplinas de anatomia no primeiro ano). Aos poucos, porém, o espaço foi ficando pequeno para o público, que se avolumou, obrigando a exposição a migrar para o terceiro e quarto pisos do Prédio 2 da UFCSPA — no ano passado, foram mais de 6 mil visitantes em apenas 11 dias.
Durante o passeio, é possível conhecer os mais diversos órgãos do corpo humano sem pele ou maquiagem. Também são exibidas algumas anomalias causadas por doenças, como uma peça com prótese colocada após uma mastectomia. No total, 85 estudantes atuam como guias voluntários nas visitas escolares, cujo agendamento já foi encerrado — alguns deles ficam à disposição para ajudar quem vai por conta, mas convidar um amigo médico para um passeio não é má ideia.
Estudante do sétimo semestre de Medicina, Gabriela Rocha, 23 anos, foi a encarregada por dissecar um fígado e um baço superdimensionados pela síndrome hemofagocítica (doença autoimune rara que desencadeia inflamações). Os dois órgãos, que chegam a ter cinco vezes o tamanho das estruturas saudáveis, serão expostos ao lado de um baço e um fígado normais.
— Quando chegou, vi que estava com um aspecto diferente, tinha uma película ao redor. Tinha o trabalho de tirar isso sem cortar a peça, o que podia estragar tudo. Fiquei feliz com o resultado. É como se fosse um filho... Quando um professor que entende diz que está bom, fico mais confiante, com mais certeza da área que eu quero seguir depois — comenta a estudante, que pretende se especializar como cirurgiã.
Fã das disciplinas de anatomia, Gabriela é uma das veteranas da oficina. Da primeira vez em que participou, no terceiro semestre, também trabalhou em um projeto peculiar: foi uma das alunas que dissecou o chamado "gigante", um corpo de 2m3cm que tornou-se um dos xodós de alunos e professores (a peça é exposta inteira, geralmente ao lado de um anão). A minúcia com que os alunos tratam os órgãos resulta em um trabalho que impressiona e, por vezes, confunde visitantes.
— A gente não imaginava essa curiosidade das pessoas com o corpo humano. A cada ano, cresce o público. Sempre fazemos uma pesquisa de satisfação, com um espaço aberto para as pessoas dizerem o que mais chamou a atenção na exposição. Em uma dessas, uma pessoa escreveu: "os corpos parecem reais" — sorri a coordenadora do projeto.
O que: Museu de Anatomia da UFCSPA
Onde: Prédio 2 da UFCSPA (Rua Sarmento Leite, 245, Porto Alegre)
Quando: de 11 a 22 de maio (visitação de segunda a sexta-feira, das 9h às 21h, e sábado, das 9h às 17h)
Quanto: 1kg de alimento não perecível a ser destinado a instituições beneficentes