O pacote de projetos enviado à Câmara de Vereadores pelo prefeito da Capital, Nelson Marchezan, que propõe mudanças no Estatuto dos Funcionários Públicos e na Lei Orgânica, aprofundou o conflito entre a administração e os servidores municipais.
As propostas são classificadas como "terrorismo" pelo Sindicato dos Municipários (Simpa): itens como a abolição da licença-prêmio e a revisão de gratificações precarizariam o serviço público, segundo os representantes do funcionalismo.
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A prefeitura sustenta que Porto Alegre vive a mais grave crise financeira da sua história e precisa reduzir gastos com a folha de pagamento.
– Se não continuarmos propondo medidas, chegaremos ao final do ano com duas folhas em atraso, pelo menos, e essa situação persistiria, porque a prefeitura gasta mais do que arrecada há muito tempo. As despesas crescem de forma automática, principalmente de pessoal – diz o secretário municipal da Fazenda, Leonardo Busatto, acrescentando que, no resultado que sai no próximo mês, Porto Alegre já deve ter ultrapassado o limite prudencial previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal em relação às despesas de pessoal, de 51,3%.
Diretor-geral do sindicato, Alberto Terres destaca que as propostas atacam conquistas dos últimos 40 anos dos servidores da Capital. Conselheiro da Associação dos Auditores e Técnicos de Controle Interno da Prefeitura Municipal (Ascontec), Nario Fagundes acrescenta:
– O pacote acaba com a carreira do funcionário público. Todos os servidores vão ser afetados, do operário ao nível mais superior. Sem falar que, ao precarizar o serviço, o município também vai começar a perder talentos.
Busatto afirma que o maior impacto desse pacote de projetos às finanças surgirá a médio e longo prazos. O secretário acredita que quem olhar de fora vai acabar se perguntando: por que não foi feito antes?
– Os vereadores que conhecem a prefeitura sabem que, em algum momento, isso deveria ocorrer. Talvez o melhor momento seja agora: na crise, a gente acaba tendo de tomar as medidas mais importantes – salienta.
O secretário de Planejamento e Gestão, José Alfredo Parode, ressalta que as propostas mexem em uma pequena parcela das 73 gratificações ou vantagens remuneratórias associadas à remuneração do servidor em Porto Alegre.
A estimativa é de que a mudança nos avanços e o fim da gratificação por tempo de serviço representem economia de R$ 77,9 milhões e R$ 37 milhões até 2036, respectivamente, mas a prefeitura não consegue estimar o impacto total das propostas.
O pacote foi enviado no final de julho à Câmara. Os vereadores devem votar hoje um requerimento que pede a criação de uma comissão especial para analisar os projetos.
ZH ouviu municipários e entrevistou o secretário da Fazenda, o secretário de Planejamento e Gestão e a procuradora-geral do Município, Eunice Nequete. Entenda as principais mudanças propostas e os argumentos de ambos os lados:
Mudança ou extinção de gratificações
O projeto de Lei Complementar que altera o Estatuto dos Funcionários Públicos e planos de carreira precisa de maioria simples na Câmara para ser aprovado. Em vez de um aumento de 5% a cada três anos de trabalho (triênio), o servidor receberia um aumento de 3% a cada cinco anos (quinquênio). Esses avanços também ficariam restritos a servidores efetivos – não valeriam mais para CCs ou contratados pela CLT.
As gratificações adicionais por tempo de serviço seriam extintas: o servidor hoje recebe uma gratificação de 15% quando completa 15 anos e de mais 10% ao fazer 25 anos de trabalho. Haverá regras de transição: por exemplo, quem tem 12 anos de serviço hoje poderá receber 12% de gratificação ao completar 15 anos.
Veja no exemplo ao lado o que essas mudanças representariam no salário de um servidor – a simulação inclui gratificações como o regime de dedicação exclusiva.
O que dizem os servidores
Alberto Terres, diretor-geral do Simpa, destaca que o projeto "acaba com o plano de carreira do servidor". Um servidor que não quis se identificar ressaltou que, na iniciativa privada, o trabalhador pode melhorar de cargo para crescer na carreira. Mas o servidor público não pode, portanto essas gratificações são importantes para o municipário evoluir.
O que diz a prefeitura
Mesmo sem qualquer revisão salarial, a folha do servidor terá acréscimo de 1,67% ao ano referente a avanços (triênios) e 1% ao ano em razão dos adicionais por tempo de serviço (aos 15 e 25 anos). A nova proposta fará com que a folha tenha crescimento menor, de 0,6% ao ano. A estimativa é de economizar R$ 77,9 milhões e R$ 37 milhões até 2036 com as medidas, respectivamente.
Regime especial de trabalho
Servidores com regime especial de trabalho temem perder até metade do salário com esse mesmo projeto de Lei Complementar. Ele permite à prefeitura cessar regimes como o de dedicação exclusiva e o de tempo integral. Neles, os profissionais ganham uma gratificação de 100% e 50%, respectivamente, ao aumentar a carga horária de 30 para 40 horas semanais. Depois de dois anos, o servidor "incorpora" a gratificação e só ele pode pedir para voltar a fazer as horas pelas quais foi contratado.
– Isso poderia diminuir o meu bruto em R$ 4 mil. É uma sensação horrível, de que vai fechar o mês e não vamos ter como pagar as contas que assumimos – preocupa-se uma servidora com mais de 20 anos na área da saúde, que não quis se identificar.
A procuradora-geral Eunice Nequete garante que quem já incorporou essa gratificação não vai perdê-la.
– O que está incorporado, o que é direito adquirido, não vai ser tirado de ninguém – salienta.
Atualmente, são 2.647 servidores com regime especial. Desses, cerca de 450 ainda não têm o regime há dois anos e poderiam perder a gratificação. Pelo projeto, agora um servidor entrará no regime especial com prazo de um ano. Ao final, o regime terá de ser prorrogado pelo gestor. Além disso, acréscimos por tempo de serviço não incidirão mais sobre a gratificação.
O que dizem os servidores
Para Alberto Terres, o gestor poderá escolher a quem dar a gratificação e tornar isso uma ferramenta de perseguição ao funcionário. Ele ressalta que a garantia dada pela prefeitura, de preservar a gratificação para quem a tem há mais de dois anos, não está escrita no projeto.
O que diz a prefeitura
Busatto afirma que a proposta "corrige uma distorção": o gestor não tem autonomia para decidir quem deve manter o regime especial. Ele exemplifica: em um projeto especial, há mais demanda de trabalho e existe a necessidade de ampliar a jornada de alguns membros da equipe. Com o fim do projeto, não haveria mais necessidade de ter esses funcionários com carga horária estendida e custos muito mais altos ao poder público.
Gratificação por cargos de chefia
Hoje, após exercer funções de chefia por 10 anos – contínuos ou não –, o servidor incorpora ao salário as gratificações. Com o projeto, essas incorporações ocorreriam após 25 anos de contribuição para a mulher e 30 para o homem. Os direitos já adquiridos seriam preservados.
O que dizem os servidores
Terres destaca que, hoje, o servidor já pode incorporar esse valor após 10 anos. Diz que é mais um exemplo de conquista da categoria que o prefeito quer retirar, sem apresentar nada de contrapartida.
O que diz a prefeitura
A procuradora-geral explica que, nos padrões atuais, o servidor exerce uma chefia e vai incorporando esse valor para o resto da vida. Isso gera uma espécie de rodízio para conquistar a gratificação. A ideia é que o servidor continue estimulado a exercer funções de chefia, incorporando o valor nos últimos cinco anos de contribuição para levar à aposentadoria.
Fim da licença-prêmio
Um projeto de emenda à Lei Orgânica busca extinguir a licença-prêmio, uma licença remunerada de três meses dada ao servidor que, por cinco anos, não tiver interrompido a prestação de serviços e tiver assiduidade. Essa proposta precisará de dois terços dos votos de vereadores em dois turnos de votação.
A prefeitura cita revisões recentes do benefício nos governos federal e estadual. Mas, no Estado, o projeto que passou pelo primeiro turno de votação prevê que ainda haja folga de três meses a cada cinco anos trabalhados, desde que o servidor faça cursos de qualificação. A proposta de Marchezan não prevê isso.
O que dizem os servidores
Para Terres, a licença-prêmio é uma ferramenta positiva para premiar a dedicação e a assiduidade do servidor. Ele destaca ainda que, na iniciativa privada, há outras formas de incentivar a produtividade, como o percentual sobre os lucros da empresa.
O que diz a prefeitura
Busatto é categórico em destacar que é obrigação do servidor não faltar, e que o funcionário que tiver faltas não justificadas deve ter descontado o valor do salário.
Pagamento até o quinto dia útil
Com um projeto de emenda à Lei Orgânica, Marchezan quer pagar os salários até o quinto dia útil do mês subsequente, e não mais o último dia útil do mês. Também prevê que o 13° poderia ser pago até o quinto dia útil do mês de janeiro do ano seguinte, e não mais até 20 de dezembro. Precisa ser aprovado por dois terços dos vereadores, em dois turnos de votação.
O que dizem os servidores
Terres destaca que, historicamente, o servidor recebe seu salário no último dia útil do mês. O pagamento de 13° em janeiro é ainda mais criticado: trará impactos, inclusive, ao comércio e serviços da cidade no final do ano, mexendo no poder aquisitivo de 23 mil servidores ativos e inativos, segundo o sindicalista.
O que diz a prefeitura
Busatto admite que essas medidas não devem solucionar os problemas nas contas da prefeitura, mas dariam um prazo maior de arrecadação para ajudar a honrar os salários dos servidores. Diz que compreende o argumento relacionado ao comércio, mas destaca que "tem que ter dinheiro" para pagar os salários. Parode acrescenta ainda que a lei prevê o pagamento até o quinto dia útil de janeiro, então, se houver possibilidade, será pago antes.
Parcelamento oficializado
No mesmo projeto de emenda à Lei Orgânica que prevê a postergação do pagamento dos salários, Marchezan legaliza a possibilidade do parcelamento que já vem ocorrendo desde junho em Porto Alegre. Segundo a redação do projeto, quando os pagamentos não forem feitos dentro da data estipulada, os "valores a serem quitados corresponderão aos vigentes no mês do seu pagamento, admitido o parcelamento na forma da lei".
O que dizem os servidores
Terres destaca que a Justiça proibiu o parcelamento e que o prefeito vem descumprindo essa determinação. Ele relata que, em ação judicial, o Simpa pede multa à pessoa física do prefeito, e acredita que colocar dentro da lei o parcelamento é uma forma de tentar fugir de penalizações.
O que diz a prefeitura
Após o envio dos projetos à Câmara, Marchezan atestou à reportagem que "existe hoje a possibilidade de aplicação de multa pelo Judiciário ao gestor, mesmo não tendo recursos, por não pagar os salários em dia". A procuradora-geral do município acrescenta que essa medida visa regrar o parcelamento, assegurando ao servidor que o salário será pago.