Nos últimos dois anos, Porto Alegre e eu andamos nos estranhando. O desentendimento começou, acho, em 2015, quando voltei à cidade após longo período fora. Não falarei aqui das mazelas que todos conhecemos: além da tormenta econômica e das assustadoras manchetes diárias, o que me perturbava era uma espécie de desmazelo metafísico, um decrescimento ontológico, como se a própria essência da cidade estivesse se tornando rarefeita e cada vez mais difícil de captar. Andando ao léu, eu sentia imensa dificuldade em reconhecer o espírito dos lugares onde havia me perdido, alegremente, lá no fim dos anos 1990, recém egresso das profundezas atávicas da campanha bajeense.
Por onde andariam as cachaças de Teletubbies que um dia adornaram, com ironia silenciosa de totem, as prateleiras do Bar João? Em seu lugar, agora erguia-se um monstrengo envidraçado, ofuscante leviatã cuspidor de carros. Onde estava o peripatético sebo do Ventura, que outrora pululava entre o Centro e as vizinhanças da Redenção, rebrotando ora no fundo de uma galeria, ora no pátio de um casarão do Bom Fim? Os ventos do destino o haviam soprado para outras plagas da cidade, lá onde minhas pernadas já não podiam alcançá-lo. Restava-me, ainda, a Lancheria do Parque, em cujas profundezas – agraciadas pela presença do Hildo, ideal platônico de todos os garçons de bar – eu me refugiava aos fins da tarde, em busca daquela minha outra Porto Alegre, a que parecia haver sumido.
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O que me salvou, como sempre, foram os livros. Incapaz de reencontrar Porto Alegre na realidade, tentei reconstruí-la na imaginação. Nos recônditos da Lancheria, de manhã cedo, eu mergulhava em ficções porto-alegrenses, como se o ritmo da leitura fosse um antídoto contra o descalabro dos tempos. Li mais a respeito de Porto Alegre, nesses dois anos de confusão, do que jamais havia lido antes. A cidade literária não apenas revelou coisas sobre a cidade material: redimiu-a. Quando retomei minhas andanças, foi com novo espírito desbravador: agora eu queria encontrar os pontos de confluência entre a fantasia e a realidade.
No Bom Fim, tentava imaginar onde ficaria a Loja Cysne, local de trabalho do macabro e malsinado pintor João Benito Damiani – um dos protagonistas de Ibiamoré: O Trem Fantasma, grande romance de Roberto Bittencourt Martins. E, circulando pela Praça da Alfândega, eu tentava flagrar o renitente fantasma da Dama do Bar Nevada – personagem do clássico relato de Sergio Faraco, que insistia em buscar o sabor da vida entre os escombros e a decadência. Essas almas ficcionais, com suas agruras, suas derrotas, seus desesperos, sua insistência em existir lá na margem obscura do mundo, davam ao meu desalento uma nitidez que, de certa forma, o transfigurava.
Acabei achando Porto Alegre bonita outra vez, bonita como a Dama do Bar Nevada: lutando. E tive a confirmação perfeitamente empírica de uma teoria em que sempre acreditei: digam o que quiserem, mas a humanidade precisa, sim, de literatura.