Um modelo de trabalho baseado na parceria entre governo e sociedade, com investimento em cultura e educação, é apontado como responsável por transformar Medellín, na Colômbia, cidade que já esteve nas mãos do narcotráfico na década de 1990.
– Éramos conhecidos por narcotráfico, Pablo Escobar e violência. Hoje, o mundo reconhece Medellín pela transformação social, urbana e cultural – ressalta Jorge Melguizo, ex-secretário de Cultura e de Desenvolvimento Social do município.
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O comunicador esteve em Porto Alegre na terça-feira para participar do painel Como Transformar Cidades Brasileiras em Smart Cities?, promovido pelo curso de Arquitetura e Urbanismo da Imed. Antes, ele conversou com ZH. Confira trechos da entrevista.
De que maneira iniciou o trabalho para reduzir a violência em Medellín?
Medellín tinha os índices mais altos de violência no mundo. Chegamos a ter 18 mortes a cada dia, durante um ano, 60 mil mortos em 20 anos. Nenhuma outra cidade, até hoje, superou esses números. A Colômbia era um país em guerra, com narcotráfico. Quando chegamos no governo em 2004, fizemos uma política pública de transparência, desenhamos projetos urbanos integrais nos bairros onde identificamos maior pobreza, maior violência e quantidade de crianças. Vimos quais eram os fatores estruturais da violência, não só os conjunturais. E os fatores estruturais teriam que vir com educação, cultura, inclusão. O que fizemos em Medellín não é obra de um líder, de um grupo. É um trabalho coletivo, da sociedade. E é isso o que nos faz ser sustentável ao longo do tempo.
O investimento na ocupação desses espaços trouxe quais benefícios?
Atualmente, a cidade tem um índice de 5% das mortes por violência que tinha nos últimos 25 anos. A recuperação da confiança do público, talvez, tenha sido o maior ponto positivo no processo. Pense no Brasil, ou na Colômbia, onde o povo é sinônimo de desconfiança, pela corrupção, pela má qualidade. Nós recuperamos a autoestima da cidade. Essa intervenção nos bairros gerou uma maior união. Antes, estávamos muito desintegrados como cidade. Hoje, acreditamos que somos capazes de sair de qualquer crise. Isso faz também com que haja uma apropriação maior da comunidade através dos projetos sociais, culturais, educacionais. Medellín se tornou uma cidade mais competitiva para investimentos, é a que mais atrai investimentos estrangeiros no país. E também tornou-se uma cidade turística, o que não esperávamos.
Como foi realizado o trabalho nas periferias?
Passamos a governar em 2004. Mas, nos 15 anos anteriores, vínhamos de uma tarefa de fortalecimento de projetos sociais. O que fizemos foi dar força a esse trabalho nos bairros, com o conceito de que o Estado se faz no bairro, em cada rua. E nós, enquanto cidadãos, necessitamos ver a presença do Estado em nossas ruas, não só com a segurança. Só a polícia não é o suficiente. E nas favelas era assim, chegava a polícia, mas não chegava um transporte publico de qualidade, uma boa educação pública, projetos de investimento. Então, definimos uma estratégia de projeto urbano integrado. Todo projeto físico que pensávamos estava a serviço dessa transformação social, não ao contrário. Chegamos a três objetivos. O primeiro é a convivência. O contrário da insegurança não é a segurança, mas a convivência. Construímos bairros mais seguros quando estamos convivendo, não colocando mais polícia. A polícia é pontual. O segundo é que teríamos que fazer com que os bairros tivessem maior inclusão social. E o terceiro, que houvessem mais oportunidades. Na zona de maior pobreza, de maior violência, de maior quantidade de crianças, vivem 200 mil pessoas. E nessa zona fizemos um projeto urbano integrado com todo tipo de obra, com moradias novas, melhorias em casas usadas, nas ruas, nos espaços públicos, fizemos parques, unidades de esporte da melhor qualidade. Levamos transporte público, centro de saúde, colégios.
Encher a cidade de policiais não é a solução.
Melhoramos as condições da polícia, com melhores postos, carros, equipamentos, mas isso não é suficiente. Melhorar a polícia não é suficiente. Formamos a polícia para que vejam uma maneira distinta de trabalhar nos bairros de maior violência, para que não pensassem que todo jovem é violento. No Brasil, os maiores males vêm de quem usa calça social e gravata. Eu não quero viver em uma cidade cheia de polícia. A quantidade de polícia não gera mais segurança. A convivência se constrói através de projetos culturais, iniciativas sociais. Os países mais seguros são aqueles que têm maior convivência, onde há oportunidade, igualdade e inclusão.
Porto Alegre está entre as 50 cidades com maior número de homicídios do mundo. Como o caso de Medellín pode servir de exemplo?
Acredito que a experiência de Medellín sirva como referência. Fomos capazes de três, quatro coisas. A primeira: falar muito do problema. As cidades que não falam do problema não são capazes de enfrentá-los. A segunda: é preciso conhecer muito bem o problema, de onde se origina. A terceira: Medellín teve bons resultados porque investiu muito na solução. Outras cidades esperam ter bons resultados sem investir em educação, cultura e projetos sociais nos bairros de maior pobreza. A quarta: os governos estão acostumados a trabalhar de maneira individual, cada setor para um lado. E somos capazes de trabalhar de maneira articulada e integrada. É o que eu chamo de orgia institucional. É necessário a mescla completa das organizações com dois, três objetivos comuns e não cada um trabalhando por si.
O que é mais importante: a vontade política, a busca por parcerias...?
Em Medellín, começamos a exigir uma outra maneira de fazer a gestão pública. É necessário conhecer, reconhecer, valorizar e potencializar o que já existe. Porto Alegre seguramente teria uma enorme fortaleza se conhecesse e reconhecesse o que já existe. Já devem existir muitas organizações, com trabalho comunitário, grupos com projetos culturais, grupos de mulheres, que atuam nos bairros mais violentados. E que fazem acontecer sem o Estado, apesar do Estado e, inclusive, em alguns casos, contra o Estado. É necessário potencializar esse trabalho. É necessário definir um modelo distinto de trabalho. O mais importante é que todos trabalhem juntos de maneira alinhada e articulada.
Medellín tinha dinheiro para investir nesse novo modelo de trabalho? Como que essas mudanças foram financiadas?
Nós temos um bom orçamento e uma política pública de transparência. Vou mostrar o que se pode fazer com 5% do orçamento. Dizem que de 10% a 15% do orçamento é parcela consumida por corrupção em governos. Se for possível controlar a corrupção, esses 5% podem ser utilizados para muitas ações. As empresas públicas de Medellín, que prestam serviços de energia e água, por exemplo, são muito bem administradas, transparentes e de altíssima utilidade. Há também investimentos privados e ações de cooperação internacional mais técnicas do que econômicas. Mas acredito que o que fizemos foi gerar um ambiente de cooperação econômica em que a cidade se tornou viável para outro tipo de investimentos. E tudo isso contribui. Quando uma empresa vem e se instala em Medellín, por conta do que ocorreu na cidade, são gerados 600 empregos que contribuem para tirar 600 pessoas do desemprego. É um ciclo. A iniciativa privada tem sentido quando o público consegue fazer isso.
Qual foi o maior desafio?
O maior desafio foi levantarmos e ir atrás de soluções. Outro desafio foi investir no estrutural e não no conjuntural. Hoje, o desafio é construir a igualdade. Medellín segue sendo uma cidade desigual. Então, o desafio de hoje é construir a igualdade.
Qual é a maior lição que fica com o modelo de trabalho de Medellín?
Acredito que a aprendizagem principal é a evidência de que é possível transformar uma cidade. Se em Medellín foi possível, em qualquer parte é possível. É muito difícil encontrar uma cidade no mundo que já teve tanto problema de violência como Medellín. A principal lição é que é possível. A segunda lição é que isso não é um assunto de um líder carismático, é um desafio coletivo. É preciso avançar junto como sociedade. Outra lição é que não há fórmula mágica, não acontece do dia para o outro, é preciso ser construído com paciência. Medellín é resultado de muitos anos. Levamos 25 anos nesse processo de transformação. A sociedade civil, o governo e todos juntos. Somos sociedades muito frágeis, tudo pode ser perdido se não soubermos mudar e trabalhar em conjunto. Eu insisto muito que tudo isso tem que gerar a construção de uma nova cidadania. Uma cidadania mais participativa, mais exigente.