Kamil Ergin
Jornalista turco, responsável pelo portal Voz da Turquia, coordenador da Plataforma de Mídia do Centro Cultural Brasil-Turquia e integrante do movimento Hizmet.
A tentativa de golpe na noite de 15 de julho na Turquia é, sem dúvida, um evento lamentável que todos os apoiadores da democracia devem condenar. Entretanto, ela apresenta estranhezas se comparada a outros golpes na história do país: ocorreu em um horário em que as pessoas ainda estavam nas ruas; teve organização fraca, com bombardeios em centros irrelevantes; os políticos do governo e os líderes de oposição não foram apreendidos pelos golpistas, que tomaram controle de apenas um canal da televisão público, com poucos espectadores, e não mexeram com os outros órgãos de comunicação, deixando o presidente e seus ministros convocarem o povo para a rua; os aviões-caça voavam, como ocorre em um golpe, mas o avião do presidente Recep Tayyip Erdogan também estava no ar tranquilamente. Coisas que não se ajustam a um golpe.
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Mais uma coisa estranha é que, embora o organizador do golpe tenha sido um coronel com um efetivo pequeno, nos dias seguintes o governo destituiu, demitiu, expulsou ou até prendeu mais de 15 mil professores, 8 mil juízes e promotores, 7,9 mil policiais, 1.577 professores universitários e diretores de faculdade e mais de 2 mil oficiais militares!
O lado mais estranho é que Erdogan acusou Fethullah Gülen e o movimento Hizmet enquanto o golpe ainda acontecia. Gülen deu uma entrevista à imprensa estrangeira, dizendo que uma comissão internacional deve ser formada para apurar o golpe, e que ele aceitaria qualquer resultado. Não é a primeira vez que Erdogan acusa o Hizmet por qualquer problema que a Turquia vem tendo nos últimos anos.
Em dezembro de 2013, Erdogan impediu uma investigação de corrupção e a definiu como um golpe orquestrado contra ele pelo Hizmet. Policiais, juízes e procuradores foram destituídos e presos. Como se não bastasse, o presidente começou a prender jornalistas, empresários, professores e até mulheres grávidas e idosos que simpatizam com o Hizmet. Empresas e escolas privadas foram confiscadas, e administradores públicos foram nomeados como tutores. Canais de TV foram retirados do satélite e do sistema a cabo, jornais foram tomados à força, e as redes sociais, suspensas. Em seguida, a separação dos poderes foi destruída, o sistema judiciário foi ligado diretamente ao governo pelo ministério da Justiça.
Após essa tentativa de golpe duvidosa, começou um golpe real perpetrado por Erdogan. O governo se beneficiou da situação, acusou o Hizmet (que havia, antes, chamado de grupo terrorista) como mentor do golpe e começou uma caçada em todos os órgãos públicos e privados, demitindo, expulsando, cancelando licenças e prendendo pessoas, sem prova, sem processo, sem julgamento, sem defesa. Apenas algumas horas após a tentativa de golpe, Erdogan disse:
– Foi uma bênção de Deus. Temos a chance de fazer uma limpeza generalizada, começando nas Forças Armadas. Porém, essa limpeza não será restrita aos militares.
As mais de 50 mil pessoas demitidas dos seus trabalhos demonstram que a caça às bruxas pretende aniquilar o Hizmet (Nota do editor: na quarta-feira passada, Erdogan anunciou a instauração do estado de emergência nacional por três meses, "para erradicar rapidamente todos os elementos da organização terrorista envolvida na tentativa de golpe de Estado" ). O governo oficialmente está convidando as pessoas a denunciarem seus conhecidos e vizinhos ligados ao movimento. Todas as autoridades de alto escalão conclamaram o povo a não alugar casas para eles, nem fazer compras com eles, não dar empregos.
– Não há mais as condições de vivermos com os que têm relações com o Hizmet – disse o ministro da Justiça, Bekir Bozdag, ao vivo na CNN Turk.
Erdogan, que não consegue influenciar as atividades do Hizmet no Exterior, quer aproveitar a oportunidade para estender a perseguição.
Os partidários de Erdogan na Europa escutaram o chamado do governo e estão identificando as casas e lojas dos membros do Hizmet e, em um gesto de ressonância sinistra, colocando símbolos nas portas para identificá-los.
Essa campanha de difamação rendeu o primeiro resultado concreto na Somália, que recebe ajuda financeira do governo turco para pagar os salários de seus funcionários públicos. O país fechou a escola e o hospital fundados pelo Hizmet. Que relação podem ter pessoas que há 20 anos dão assistência humanitária e educação na Somália com um golpe duvidoso feito por um pequeno grupo de militares na Turquia? As embaixadas, que tinham dever de cuidar dos seus cidadãos no Exterior, infelizmente fazem parte dessa caça às bruxas contra os próprios cidadãos, denunciam-nos como terroristas!
Os golpes, sem dúvida, são uma ameaça que fere a democracia e danifica a honra humana. Porém, as leis atuais e os valores universais não dão nenhum tipo de direito às autoridades para esmagarem oposicionistas e críticos.
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O QUE É O HIZMET?
Fundado pelo imã Fethullah Gülen (1941) nos anos 1960, Hizmet significa “serviço” na língua turca.É um movimento civil, baseado na tradição espiritual e humanística do Islã e inspirado nas ideias e no ativismo de Gülen, que prega a coexistência pacífica entre religiões e culturas, a democracia e a liberdade de pensamento por meio de organizações sem fins lucrativos, como centros culturais, escolas, jornais e hospitais. É o grupo acusado pelo governo turco de ter organizado a tentativa de golpe do dia 15, algo que o Hizmet rejeita. O regime do presidente Recep Tayyip Erdogan pediu aos EUA a deportação de Gülen, que vive na Pensilvânia.