A linguagem é usada para os mais variados fins, da ciência à política, desta aos ritos religiosos e invenções artísticas. Tais enunciados na trazem de novo, pois são lugares comuns da cultura. Eles servem como protocolo em pesquisas sobre o uso coletivo da fala e da escrita. Émile Benveniste muito contribuiu para o estudo de semelhante terreno em trabalhos sobre a blasfêmia. Ele criou um neologismo para melhor explicitar o peso daquele ato, o termo oposto, a eufemia. Em situações de sofrimento ou indignação contra o divino, é proibido usar o nome do Senhor. Logo, palavras inocentes substituem a denominação do Altíssimo. Línguas piedosas como o espanhol e o francês (a França é considerada a filha mais velha da Igreja Católica
) usam termos blasfemos e os dissimulam com eufemismos. Os leitores permitam citar exemplos desagradáveis, mas significativos. Quando um francês quer protestar contra os céus, ele grita, em vez de "nome de Deus!", "nome de uma pipa!". Quem o escuta, se partilha o idioma e cultura, sabe que uma blasfêmia foi proferida. Se radicaliza o palavrão contra a divindade, em vez do "renego Deus!" temos "jarnibleu". Se estiver na França, amigo leitor, e alguém gritar ou murmurar tal fórmula, saiba que o emitente está possuído de muita raiva contra o Eterno e os homens.
Já os espanhóis são menos reservados no eufemismo. Nele introduzem termos chulos que não deixam dúvidas sobre o sentimento do emitente. O mais célebre dos enunciados blasfemos espanhóis é "me c
en la leche!". No francês o termo também é usado, em termos eufêmicos, mas não diretamente contra o sagrado. Ele serve para manifestar desprezo por um adversário truculento. "Je me ris de tes coups, jincague ta fureur" ("Rio dos teus golpes, me c
por teu furor", Jean François Renard). A origem do vocábulo é latina, claro. Um ibérico de língua e cultura, sobretudo se católico, ao ouvir exclamações daquele baixo calão sabe: o indignado insulta Deus, sua Mãe, e tudo o que há de sagrado no mundo e no Além. A blasfêmia só vale para quem acredita na realidade contra a qual levanta seu insulto. Não tem sentido para um budista ou adepto do Candomblé, ou ateu, xingar o ser divino judaico, cristão, muçulmano e suas manifestações. Só blasfema o crente. Ele está envolto até as medulas da alma na constelação contra a qual se insurge, ele nela deposita fé plena. A interdição de explicitar o xingatório obriga ao eufemismo, mas a crença é mantida.
Tal fato nos leva a pensar sobre a operação da fala, em termos amplos. Um autor hoje pouco lido publicou estudos excelentes sobre o ato de falar. Me refiro a J. L. Austin, sobretudo em seu livro How To Do Things With Words. Segundo Austin, o que a língua faz não é nem verdadeiro nem falso: está bem feito ou mal feito. Em lugar de erros ou falsidades, ele prefere dizer "atos infortunados" em abusos do pensamento, sentimentos, intenções, atos gerados pela insinceridade do agente. Assim, dar conselhos com objetivos torpes, dizer culpado o inocente, prometer querendo não cumprir, não consiste em dizer coisas "falsas", mas insinceras.
Os atos de fala dependem, segundo Austin, do ajuste de quem enuncia a um "procedimento convencional aceito ( ) que inclui a emissão de certas palavras, por parte de certas pessoas em certas circunstâncias". Este aspecto é determinado como ilocução (o que fazemos ao dizer algo), mas não como perlocução (o que fazemos pelo fato de dizer algo). A perlocução é o efeito produzido por um ato linguístico, o objeto ou a simples sequela deste ato. A perlocução pode ser intencional ou inintencional, mas não convencional. Ela se produz ou deixa de ocorrer independentemente da correta efetivação do ilocutivo. Por exemplo : "mate-o" é locutivo. "Ordenou-me que o matasse", ilocutivo. "Persuadiu-me a matá-lo", perlocutivo.
"Persuadir", "convencer", "assustar", "alarmar" são perlocutivos cuja efetivação não depende de certas expressões, mas da habilidade, astúcia do falante, vulnerabilidade do ouvinte, circunstâncias pouco previsíveis ou controláveis pelos próprios sujeitos da fala. Para expôr a não convencionalidade do perlocutivo, Austin afirma que um juiz decide, pela oitiva de testemunhas, quais locutivos e ou ilocutivos foram empregados no crime, mas não pode saber os perlocutivos porque não tem provas para tal exame. O ilocutivo é ato mínimo que consiste em dizer algo. O perlocutivo resulta do ter dito algo que não consiste em outro ato de dizer. Ele não é convencional e não pode ser explícito, caso contrário perde eficácia. Não se diz: "eu te persuado", ou "eu te assusto" quando se quer persuadir ou assustar.
Moral da estória: se alguém pragueja contra a democracia, comete blasfêmia se nela acredita. Imagino ser assim a consciência brasileira. Mas se alguém usa frases que aumentam a fraqueza da ordem democrática, temos a mentira. O blasfemo acredita, o mentiroso não. Ele não é sincero e, portanto, é desonesto. As massas na ruas blasfemam, os políticos nos corredores e gabinetes assustam e tentam persuadir com o uso da mentira. É o que fizeram alguns políticos petistas, comandados pelo exemplo de seu líder maior, quando proclamaram c... e andar para as regras legais contrárias à sua prática. No caso, tivemos o niilismo puro que disfarça e sufoca, mas não abole, a indignação contra o esfacelamento da vida em democracia.
*Roberto Romano escreve quinzenalmente no caderno PrOA.
Leia mais textos de Roberto Romano
Leia todas as colunas do Caderno PrOA