Uma entrevista concedida por mim ao jornal Valor Econômico (30/12/2015, página A-12) suscitou certa onda de protestos, quase todos pronunciados pelos apoiadores do governo federal. A correspondência do periódico precisou cortar ataques contra minha pessoa. Mimos como "sua besta", "pseudo filósofo" e "pseudo jurista" foram publicados, porque tidos como leves perto de outros contidos nas demais cartas. Recordo o enunciado de Spinoza: diante das mazelas humanas, não devemos rir nem chorar, mas compreender. Ademais, vejo naqueles insultos um desespero dos que ainda não aprenderam que os poderios políticos, econômicos, religiosos, embora durem muito tempo, um dia acabam. O tempo arranca os fundamentos de regimes estabelecidos, costumes milenares, discursos dogmáticos.
Boa parte dos que hoje defendem palácios contra as praças deixaram de consultar a tradição dos pensadores prudentes. Tivessem eles compulsado a República platônica (indo além das tolices a ela atribuídas, como o seu suposto "idealismo" e o melaço do "amor platônico") saberiam que os modos de mandar no Estado seguem um caminho inexorável que suprime e conserva as formas de comando. Assim, o tipo aristocrático cede passo ao oligárquico, este último perde hegemonia para o democrático que, por sua vez, devido às suas próprias fraquezas, dá lugar à tirania. Nenhum poder é perene, todos são ameaçados por suas debilidades ou mesmo fortalezas. Daí, a proposta de Platão (autor realista, ao contrário do que enunciam os Almanaques do Elixir Paregórico que deturpam seu pensamento) de, pela técnica e com uso de muita engenharia (e matemática), definir a máquina do Estado, mecanismo frágil mas que, usado por especialistas, poderia ampliar a sobrevida coletiva adiando a sua morte, causada pelos interesses conflitantes que corroem a unidade da pólis.
A receita de Platão - construir o Estado-máquina dirigido por sábios competentes - foi acolhida na Idade Média, no Renascimento e na modernidade. Ela serviu a estadistas como Richelieu, o artífice do Estado tal como o conhecemos. Mesmo no século 19, doutrinas como o positivismo comteano devem bastante à leitura de Platão em sua proposta da ditadura como base de um poder estável. Digo mais para escândalo dos que habitam a margem esquerda da política. Sem a proposta platônica, dificilmente Lênin poderia imaginar um partido-máquina dirigido por intelectuais. Estes iriam além do "economicismo proletário" e pensariam a política de forma concreta. Os intelectuais usariam a autoridade do saber para dirigir as massas submetidas ao jugo da ideologia.
Na entrevista indicada, o que mais causou celeuma foi minha tese segundo a qual, entre as muitas razões para um impedimento da presidente Roussef, a perda da autoridade seria relevante. Também em tal ponto os defensores do palácio deveriam ter lido muito antes de xingar. Autores como Theodor Mommsen tratam da auctoritas no mundo romano, herdado por nós em tudo, inclusive no direito público. A autoridade, enuncia aquele autor classico, "é menos do que uma ordem, mais do que um conselho". (Theodor Mommsen: Le Droit Public Romain, 1985). Todos conhecem os monopólios do poder legítimo, sobretudo o da força física. Pois bem, dos mais problemáticos em termos de legitimidade, aquele recurso exige autoridade para ser acatado. Alexandre Kojève dá um exemplo simples para sugerir o ponto. Se para expulsar alguém de meu quarto preciso usar a força, não tenho autoridade". (La Notion de LAutorité, 2004). Se tenho a força e a lei de meu lado, mas quero continuar no palácio, preciso ostentar autoridade, mesmo e sobretudo sobre meus adversários. Voltarei ao assunto, mas termino dizendo: se para falar à nação preciso me esconder na internet porque meu discurso será alvo de panelaços em todo o país, minha autoridade chegou ao mínimo. E uma situação assim entra, com certeza, no caldo de um impedimento. Última lembrança sobre o tema: o texto de Hannah Arendt, O Que é a Autoridade? (na edição francesa La Crise de la Culture, 1972). Um comentário interessante: Robert C. Mayer (Hannah Arendt, Leninism & Disappearance of Authority, revista Polity, 1992). Mas talvez seja tempo perdido, militantes brasileiros perderam o hábito da leitura, a técnica do xingatório domina à direita ou à esquerda do espectro político.
*Roberto Romano escreve quinzenalmente no caderno PrOA.
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