*Ex advogada da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mestre em Direito pela Universidade de Harvard (EUA), advogada da Associação das Vítimas da Tragédia da Boate Kiss que apresentará denúncia internacional contra o Brasil pelo incêndio.
As atrocidades da II Guerra Mundial fizeram nascer a preocupação da comunidade internacional com a proteção dos direitos humanos. Os horrores do Holocausto se dirigiram não apenas contra países vizinhos com os quais a Alemanha estava em guerra, mas sobretudo contra seus nacionais, que não tiveram a quem recorrer frente ao horror dos massacres, deixando clara a necessidade de uma proteção além das fronteiras que garanta os direitos das pessoas contra abusos cometidos pelo seu próprio Estado.
É nesse período que se internacionaliza a proteção aos direitos humanos, com a criação de tribunais de jurisdição universal, como a Corte Internacional de Justiça (1945), ou regional, como as cortes Europeia (1959), Interamericana de Direitos Humanos (1979) e o Tribunal Africano de Direitos do Homem e dos Povos (2004).
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Esses instrumentos regionais de proteção aos direitos humanos são, portanto, o resultado de uma construção civilizatória e compartilhada entre as diversas sociedades de que os Estados devem obedecer a limites ditados pelo princípio da dignidade humana no tratamento dos indivíduos sob sua jurisdição. Nenhuma instituição pública pode eximir-se de respeitar as normas a que o Estado se obrigou em âmbito internacional. A responsabilidade internacional do país, cabe destacar, é objetiva. Assim, não importa se houve culpa do agente violador, basta apenas que a violação seja resultado da inobservância das obrigações dos agentes do Estado de forma direta ou por pessoas com apoio, tolerância ou aquiescência do poder público.
Os instrumentos internacionais, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é membro desde 1992, têm um duplo impacto: geram obrigações perante as instâncias internas e internacionais. No âmbito interno, a justiça e o poder público locais devem efetivar os direitos consagrados, executando políticas e interpretando as normas sob o prisma da primazia da pessoa humana. Na esfera internacional, esses tratados permitem que todo indivíduo invoque a tutela internacional quando o Estado viola direitos. Uma vez apresentada a denúncia internacional, é dada visibilidade às violações de direitos humanos internas, gerando constrangimento moral e político internacional ao país demandado. Mas os efeitos vão muito além.
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Em particular, a atuação do Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem gerado mudanças institucionais significativas nos sistemas de justiça nacionais em muitos dos 25 países membros da convenção. Foi a sentença emitida pela Corte Interamericana no Caso Barrios Altos versus Peru que determinou a derrogação da Lei de Anistia vigente naquele país, proporcionando a posterior investigação, processamento judicial e condenação do ex-presidente Alberto Fujimori.
No Brasil, onde a atuação do sistema regional interamericano é mais recente, já relevantes legislações foram adotadas em razão de determinações internacionais. Foi em cumprimento à resolução da Comissão Interamericana no Caso 12.051 - Maria da Penha Fernandes, de 2001, que o Brasil aprovou a Lei Maria da Penha, em 2006. Nesse caso, a Comissão concluiu que havia uma violação continuada do direito da vítima à tutela judicial efetiva e que a impunidade que o agressor gozava, apesar da gravidade do ataque que havia perpetrado contra a vítima, constituía um ato de tolerância do Brasil em relação à violência doméstica. "Dado que essa violação contra Maria da Penha é parte de um padrão geral de negligência e falta de efetividade do Estado para processar e condenar os agressores, a Comissão considera que não só é violada a obrigação de processar e condenar, como também a de prevenir essas práticas degradantes" referiu a Comissão ao determinar que a vítima deveria ser indenizada, seu agressor processado e punido, e uma lei criada para coibir a violência contra as mulheres. E assim o Brasil cumpriu com essas recomendações.
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A segunda instância do Sistema Interamericano é a Corte Interamericana. Como advogada executiva da Corte, sediada na Costa Rica, participei em 2005 da análise do Caso Damião Ximenes Lopes, primeira condenação do Brasil perante aquele tribunal. Mesmo antes da sentença final, houve avanços importantes: a clínica Casa de Repouso Guararapes, onde ocorreu a morte de Damião, um jovem que padecia de esquizofrenia e morreu devido a maus-tratos, foi descredenciada como instituição psiquiátrica para prestar serviços ao SUS em 2000 e desativada um ano depois; em 2004 uma pensão vitalícia foi concedida à mãe de Damião pelo Estado do Ceará e um centro de saúde modelo chamado Damião Ximenes Lopes foi inaugurado no marco da nova política de saúde mental, na cidade de Sobral, que se tornou referência na área.
Com a condenação, o Estado brasileiro pediu perdão à vítima e seus familiares e efetuou o pagamento dos valores definidos como indenização na sentença. Em 2009, o proprietário da clínica psiquiátrica e seis profissionais de saúde que lá trabalhavam foram condenados a uma pena de seis anos de reclusão em regime semiaberto.
Cabe aos agentes públicos evitar toda e qualquer violação. Ao constatar a violação, cabe repará-la e julgar seus responsáveis. Na ausência dessas condutas, haverá responsabilidade internacional. Neste momento em que o Brasil será denunciado por um novo e dramático caso de violação, a tragédia da Boate Kiss, cabe finalizar recordando que para a Corte Interamericana, o direito à verdade e à justiça tem duas dimensões: uma individual, das vítimas, e outra coletiva. A dimensão coletiva é o direito de toda a sociedade de conhecer a verdade dos fatos, para saber o que aconteceu e adotar medidas necessárias para evitar sua repetição. Justiça é, portanto, prevenção para todos nós; impunidade é a certeza de que vai ocorrer novamente. É para esclarecer a verdade dos fatos e prevenir novas violações que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos é hoje tão fundamental no Continente Americano.