*Professora do Departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford
A OXFAM, prestigiosa fundação britânica na área de desenvolvimento internacional, recentemente lançou um relatório que mostra que 1% da população mundial detém a mesma riqueza que os outros 99% restantes. Há outras formas de revelar esse escândalo global. Por exemplo: 62 famílias detêm a mesma riqueza que 50% da população mundial.
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Ao mesmo tempo em que algumas instituições questionam a forma como estes dados são apresentados, alegando que não deveríamos nos importar com a riqueza gerada, é amplamente ignorado o fato de que essa riqueza não é construída em paralelo à melhoria das condições de vida das populações mais pobres. Uma a cada nove pessoas ainda é mal nutrida e mais de um bilhão de pessoas ainda recebem aproximadamente um dólar por dia. Ainda que a pobreza extrema tenha diminuído no mundo, a mensagem é clara: o mundo nunca foi tão desigual, e a pobreza relativa é maior do que nunca. E essa desigualdade cresce em velocidade alarmante. Após a crise de 2009, por exemplo, a riqueza desse 1% da população cresceu de 44% para 50%.
Esses dados não chegam a ser totalmente novos. Já eram esperados e comentados há alguns anos. O próprio movimento Occupy Wall Street já trabalhava com o slogan "nós somos os 99%". O que não se esperava é que esse arrendamento para o 1% acontecesse tão rápido, tampouco que o número de famílias que concentram 50% da riqueza mundial caísse de 85 para 62 em apenas um ano.
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Mas o que esses dados nos dizem? Alguma coisa não anda funcionando muito bem. Seja na maneira que fazemos as coisas, seja na forma como enxergamos o mundo. É muito provável que a grade maioria desses 99% esteja trabalhando para manter a riqueza do 1%, ou para manter o patrimônio de apenas poucas famílias _ que provavelmente não são a minha nem a sua.
O que muitos dizem sobre riqueza que gera emprego e riqueza é um mito que não se sustenta mais. É preciso admitir que em tempos de crise os ricos ficaram mais ricos e isso se dá por meio do retorno de um capitalismo baseado em patrimônio. Já existem dados claros hoje em dia mostrando que essa riqueza está sendo concentrada em bens, ou seja, essa riqueza não gira e não volta para o mercado, como muitos acreditam. O resultado disso é perverso em diversas direções, mas principalmente para o agravamento de um de nossos maiores problemas do século 21: a crise de moradia urbana, a falta do direito à cidade, a gentrificação dos espaços, as remoções forçadas.
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Diante dessa figura de brutal desigualdade, é chocante pensar como o discurso vazio sobre a meritocracia se mantém no cotidiano. Há pouco tempo, foi divulgada outra pesquisa na Inglaterra, baseada em estudos genealógicos, que mostrava como basicamente as mesmas famílias controlam a riqueza desde o século 13. O estudo apontava que falência era condição temporária, já que em poucas gerações a mesma família garantia condições de reconstruir sua fortuna. O estudo levantava a hipótese de que haveria uma capacidade genética dessas famílias de manter a riqueza, mas as ciências sociais irão argumentar que se trata de uma combinação de capitais econômico, social, cultural e simbólico que faz com que a riqueza perdida de uma geração seja rapidamente recuperada por outra. Grosso modo, são os privilégios, o restrito acesso ao conhecimento e à cultura e às redes de favores que fazem com que sigamos mais desiguais do que nunca.
Muito se discute em como mudar esse quadro. Já são mais de 50 anos da era pós-Truman e do completo fracasso do modelo encabeçado pelo Banco Mundial, que fez com que a chamada indústria de desenvolvimento apenas substituísse outra indústria _ a colonial. As políticas de alívio da pobreza, de intervenções humanitárias e de distribuição direta de renda não conseguem mudar este que é um quadro estrutural de desigualdade entre as nações e as pessoas.
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A luta por mais igualdade, portanto, jamais pode ser dissociada de uma luta pelo acesso a diversos capitais, para além do econômico, que dão sentido à vida do ser humano. No fim das contas, é uma luta pelo poder, ou melhor, por empoderamento no melhor sentido da palavra. Sim, urge taxar a renda dos mais ricos. Mas isso é só o início de uma luta que deve ser pela autonomia de diferentes grupos e povos e que repense o modelo ecológico que vem junto com a acumulação de riqueza. Não se muda esse quadro sem questionar o fato de que a solidariedade e a troca são valores esquecidos em uma sociedade cujo ideal dominante é a camarotização.
Esses dados da OXFAM nos mostram que o camarote está fechando. Seria uma grande vitória se uma parte da população, especialmente as camadas populares e as chamadas novas classes médias, entendessem que esse sonho de entrar na área VIP dos 1% está cada vez mais restrito. Principalmente, que existem barreiras simbólicas para manter os mais pobres cada vez mais pobres e desacreditados, ou acreditados em um modelo de aspiração e mobilidade, que, estruturalmente, não vai acontecer.