O leitor talvez tenha acompanhado a recente polêmica em torno da Marcha do Orgulho Louco. Trata-se de um evento promovido por representantes da saúde mental, que foram acusados por entidades médicas de exporem os pacientes que participaram da marcha. A discussão acabou girando em torno de quem sabia o que era melhor para os pacientes, ou seja, uma disputa de poder. Pode-se pensar que isso diz respeito apenas aos interessados diretos - pacientes, seus familiares e profissionais da saúde -, afinal de contas, o que a loucura tem a ver com os demais? Talvez mais do que pareça.
Nos tempos de estudante, às vésperas de ter meu primeiro contato com pacientes no Hospital Psiquiátrico São Pedro, tive um pesadelo. Guiado por um técnico, estava conhecendo as instalações do hospital quando, no final de um corredor, vi passar um louco. Ele me olhou nos olhos com aquele olhar de louco descontrolado e psicopata de cinema e, como que sentindo meu medo, correu em minha direção. Fugi e tentei me esconder, mas não adiantou: ele me encontrou. Angustiado, despertei.
O sonho falava do medo, tão intenso quanto o desejo que impulsionava os primeiros passos em meu ofício. Sabia que era um momento importante, talvez definidor de minha trajetória; mas temia não suportar o encontro com a loucura, da qual pouco mais sabia que um leigo. O louco do meu sonho, porém, nada tinha a ver com quem realmente encontrei naqueles anos no hospital. Assustei-me menos com os pacientes que com alguns profissionais encarregados de cuidá-los, alguns dos quais faziam a enfermeira do filme Um Estranho no Ninho parecer boazinha.
Essa roupagem ficcional do louco - excêntrico, violento, descontrolado - parece aumentar nosso medo, mas ela nos protege de um medo maior: o de nos identificarmos com ele. É o que acontece com frequência com pessoas que visitam hospitais e clínicas psiquiátricas pela primeira vez. Ao se verem não tão diferentes, temem ser confundidas com um louco e lá ficarem confinadas. Por isso, quanto mais diferente de nós é retratada a loucura, menos nos reconhecemos nela, mais a afastamos de nós. É um mecanismo psíquico elementar: projetamos o que nos incomoda para fora, mesmo que seja parte de nós. O outro é o louco, o mau, o errado, o corrupto.
A loucura em si não é uma doença: é uma forma diferente de ser que, infelizmente para o louco, muitas vezes não é compatível com o que o mundo exige de um indivíduo. O adoecimento acontece quando o sujeito entra em crise: aí, pode tornar-se agressivo, alucinar e delirar, ter comportamentos bizarros. Esses fenômenos estranhos aos nossos olhos são um jeito que ele encontra para tentar lidar com a aterrorizante perda total de sentido que se dá em uma crise. A expressão "meu mundo caiu" é pouca para explicar o que acontece em uma crise psicótica. Algo similar pode acontecer com qualquer um, por exemplo, ante uma perda muito significativa como a morte violenta de um filho ou uma separação amorosa traumática.
As formas atuais de tratamento tentam abranger a loucura em sua complexidade, pois ela interroga não apenas o corpo do paciente, mas sua forma de estar no mundo. Por isso, envolvem profissionais de outras áreas além da medicina, como psicologia, serviço social, terapia ocupacional, artes. Não se trata de tentar adaptar o louco ao mundo - "normalizá-lo" -, mas de apostar na possibilidade de que ele encontre uma forma possível de habitá-lo. Para que isso aconteça não há receita nem remédio: é uma construção singular que requer tempo, atenção e, sobretudo, escutar o que o sujeito tem a dizer sobre sua experiência. E suportar que suas escolhas não necessariamente correspondam ao que dele se espera.
A forma como escolhemos lidar com a loucura diz respeito a todos porque fala também daquilo que almejamos como indivíduos e sociedade. O que fazer com aqueles que não se encaixam nas formas de que dispomos: tentar encaixar na marra, silenciar ou afastar da vista, ou tentar rever esses modelos para que sejam mais inclusivos? Queremos confiar as escolhas sobre nossas vidas a quem supostamente sabe o que é melhor para nós, sob risco de perdermos a voz e a parca liberdade de que dispomos? Ou desejamos poder ampliar as escolhas individuais, o que implica também assumir a responsabilidade de garanti-las ao outro?
*Paulo Gleich escreve mensalmente no caderno PrOA.
Leia mais colunas de Paulo Gleich