Ao cobrir uma das piores tragédias ambientais já registradas no país - o rompimento da barragem da Samarco em Mariana (MG) -, foi possível testemunhar como convivem, nem sempre harmoniosamente, dois países diferentes. Um é o Brasil das grandes empresas, das obras monumentais, dos órgãos de fiscalização, dos gabinetes de governo. O outro é o de quem vive à sombra das grandes empresas, das obras monumentais, dos órgãos de fiscalização e dos gabinetes de governo.
Durante a viagem de seis dias, na qual percorremos o curso da lama em Minas Gerais para documentar os estragos provocados pelo desastre, encontramos por inteiro o país de homens e mulheres que se sustentam pelo trabalho no campo ou em pequenos negócios, mas apenas vislumbramos o Brasil institucional. Encontramos um de seus braços na forma de uma barreira policial que impediu nosso acesso à localidade de Bento Rodrigues.
- Não pode passar. Talvez, só se conseguir autorização do comandante.
- Onde fica o comandante?
- Em uma sala na sede da Samarco - respondeu o policial.
Tem curiosas relações e estranhas prioridades esse Brasil que, de tão grande, nunca se mostra por inteiro. Tivemos de andar 30 minutos por uma trilha no meio do mato para conseguir avistar o povoado arrasado por milhões de metros cúbicos de lama. Lá viviam os habitantes desse outro país formado por gente sem cargo, crachá ou uniforme. Pessoas que se ocupam de plantar, pescar, vender. Pessoas como seu João Nascimento de Jesus, 70 anos, e sua mulher, Maria Irene, 76.
O difícil recomeço de quem teve a vida soterrada
Às 20h13min de 16 de novembro, sentados no pátio em frente ao hotel onde o casal estava abrigado, ouvimos João e Maria cantarem músicas de sua própria autoria ao violão para embalar a tristeza pela destruição da vila: "... vai chovendo um pouquinho / O sol queimando mais quente / A fome está nos matando / E o que vai ser da gente?"
Nesse Brasil miúdo, Sandra Dometirdes Quintão, 43 anos, voltou a trabalhar pouco depois de ter perdido o casarão histórico onde vivia e que funcionava como bar e restaurante. Pouco antes das 9h de 17 de novembro, ela fez questão de que entrássemos na cozinha cedida pelo hotel para retomar a preparação de coxinhas, pés-de-moleque e cocadas. Não nos deixou ir embora sem experimentar um dos seus salgados.
Da mesma forma, alguns dias depois, o agricultor Geraldo Ferreira da Cruz, 60 anos, insistiu em nos presentear com três abacaxis de sua plantação. Mesmo com parte da ilha do Rio Doce onde ele morava e cultivava suas plantas coberta de lodo, Geraldo só tinha sorrisos e gratidão a oferecer. Levou-nos em um barquinho sem motor até sua ilha para mostrar os estragos provocados pela lama. Aproveitou a viagem para deixar ração a seus cães e gatos antes de partir novamente para o quartinho improvisado onde está morando na casa de um irmão - todos os dias ele caminha uma hora para ir e outra para voltar da ilhota semidestruída.
Em vila de Mariana, homem se negou a abandonar os animais
E o que dizer do ajudante de obras José Horta Ramos Gonçalves, 50 anos, que decidiu continuar morando em uma zona de risco de Paracatu de Baixo - outra localidade varrida pelos rejeitos de minério - para não abandonar os animais que ainda não haviam sido resgatados?
Esperávamos encontrar apenas devastação e ressentimento no rastro da tragédia, mas deparamos com um país cheio de bons sentimentos, força de vontade e coragem nos rincões mais profundos de Minas Gerais. O Brasil oficial e empresarial, em contrapartida, demonstrou bem menos empenho e destemor: deixou a lama passar por cima das casas de João e Maria, de Sandra, de José e da ilha de Geraldo. Não conseguiu impedir que o lodo seguisse seu curso durante longos 16 dias até chegar ao mar do Espírito Santo. Limitou-se, como a população das localidades atingidas, a observar a rota vexaminosa da sujeira marrom-alaranjada.
Cientistas articulam análises autônomas sobre o desastre de Mariana
Algumas pessoas, pelo menos, se dispuseram a retirar alguns peixes antes da chegada da lama no Espírito Santo. O poder público nem mesmo foi capaz de garantir abastecimento de água limpa em cidades como Governador Valadares e Colatina durante o avanço da onda de lodo. Em busca de um pouco de conforto para encerrar a nossa expedição pela rota da lama em Minas Gerais, convidamos o motorista Valdemir para subir ao ponto mais alto de Governador Valadares, o Pico do Ibituruna, em busca de um momento de relaxamento após uma semana intensa de trabalho.
Lá de cima, o mirante que antes deveria propiciar uma das visões mais belas da região, agora só deixava mais evidente uma triste constatação. A imagem do Rio Doce, quase irreconhecível pela cor alaranjada de suas águas, havia virado o símbolo de como o Brasil das grandes empresas, dos gabinetes governamentais e dos órgãos de fiscalização falhou com sua gente. Resta saber se continuará omisso após as investigações da tragédia.
*O repórter Marcelo Gonzatto e o fotógrafo Bruno Alencastro acompanharam, entre 16 e 21 de novembro, a rota da lama tóxica avançando por Minas Gerais, viajando de Mariana até Conselheiro Pena