A Ponte de Pedra, um dos cartões-postais de Porto Alegre, está localizada no Largo dos Açorianos, logo depois do Viaduto da Borges. Inaugurada em 1854, veio para substituir a ponte de madeira que ligava o Centro Histórico ao arraial do Menino Deus. Ao custo declarado de 980 contos, foi construída com mão de obra escrava durante a Guerra dos Farrapos. Por baixo da ponte passava um dos braços do Arroio do Dilúvio, que então se bifurcava antes de chegar ao Guaíba. Em 1937, quando o arroio foi retificado, a ponte perdeu a sua função e se transformou em monumento histórico. Em 1979, o monumento recebeu um espelho dágua. Hoje, o espelho é um acúmulo de lodo, capim e sujeira.
Os verões de 2013 e 2014, em Porto Alegre, foram marcados pela multidão de jovens que, nas noites de terça-feira, se reuniam à beira do lago da Ponte de Pedra. Não faz tanto tempo assim. Caminho pelo Centro acompanhado de uma amiga que me apresentou a cidade em 2013, quando aqui cheguei. Das coisas que não se podia deixar de fazer em Porto Alegre, ir ao lago da Ponte de Pedra nas noites de terça-feira era uma delas. Debaixo das árvores, acontecia de tudo. Eram centenas de pessoas reunidas para conversar, fazer música, projetar filmes, consumir itens veganos, beber cerveja artesanal, trocar ideias, comparar bicicletas... Um piquenique espontâneo que começava ao cair do sol e seguia até as primeiras horas da madrugada. Minha amiga porto-alegrense achava tudo aquilo natural. Eu, acostumado com São Paulo, me surpreendia e me apaixonava por essa cidade cujos habitantes pareciam não ter medo de estar na rua.
Ismael Caneppele: um shopping por um cais?
Minha amiga que me apresentou a cidade hoje não mora mais aqui. Desde que cheguei, percebi que porto-alegrenses estão quase sempre indo embora. Hoje sou eu quem reapresento a cidade a ela. Morando em Berlim, quando retorna a Porto Alegre, o que ela mais sente é medo. Tem medo de pegar táxi, tem medo de ir andando, tem medo de andar de bike, tem medo de estacionar o carro, tem medo de ser atropelada, tem medo de que olhem... "Ser mulher em Porto Alegre é não poder ser", ela tenta me explicar. Eu entendo. Aqui, é preciso ser homem para poder ser livre. Tomávamos o café do fim da tarde. No jornal, buscávamos sempre evitar as últimas páginas. A última, mais especificamente. Ela perguntou sobre a polêmica do cais Mauá. Respondi que, depois do texto que publiquei defendendo o cais, fui muito xingado de comunista. São estranhos esses tempos em que detestar ir ao shopping, não ter tesão algum em consumir e dispensar um chope com bolinho de bacalhau servidos por garçons em camisa branca nos transforma em comunistas. Rimos, e seguimos andando. Só nos resta rir diante do olhar equivocado do outro.
Optamos por ir caminhando pela parte de baixo do Viaduto da Borges. Minha amiga diz que, sozinha, jamais passaria por ali. Eu digo que comigo nunca aconteceu nada. "Não aconteceria". Lembro que sou homem. Assusta olhar a cidade pelos olhos da mulher que caminha sozinha. Chegamos à Ponte de Pedra. É noite de terça-feira, é primavera, começa a fazer calor no hemisfério sul. Olhando para a o espelho dágua, hoje convertido em um brejo fedorento e sujo, lembro dos cookies da Luara, dos chinelos perdidos do Paulinho e dos cigarros do Felipe planejando ir embora. Eram intensas as noites de terça-feira no entorno da Ponte de Pedra. Hoje, o lago está seco, os peixes estão mortos e o cheiro é de coisa podre. Hoje já quase ninguém quer ficar por ali, exceto os mendigos. Hoje, passa-se pelo largo dos Açorianos com medo. Onde antes havia o estar, hoje impera a fuga.
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Porto Alegre é uma cidade que agoniza. Uma triste terra de ninguém. A Redenção e seus tapumes horrendos, o cais Mauá fechado às pessoas, o morro Santa Tereza com sua linda e perigosa vista, o viaduto da Borges sempre fedendo a merda e mijo, o monumento aos Açorianos cercado por uma tela de galinheiro e correndo o risco de desabar, o lago da Ponte de Pedra convertido em criadouro de ratos, os contêineres de lixo transbordando imundícies pelas ruas do Centro Histórico, o horrível e inútil muro da Mauá, o entorno do Mercado Público transformado em estacionamento, a Biblioteca Pública e sua reforma interminável, o Multipalco que também nunca fica pronto, o Renascença fedendo a mofo e agora a nossa orla, que será sufocada atrás de mais tapumes em uma obra que, como tantas outras, talvez nunca fique pronta. Não há mais uma Copa apressando os prazos.
Mas, talvez, a solução esteja próxima.Mais próxima do que se possa imaginar. É possível que, para cada espaço da cidade que o poder público tratou de sucatear, exista um shopping disposto a revitalizar a área. Tristes tempos para uma cidade que agoniza.
*Ismael Caneppele escreve mensalmente no PrOA.