* Eduardo Wolf é professor e tradutor. Escreve mensalmente.
Não é sempre que temos a oportunidade de andar para cima e para baixo pelo Brasil em companhia de um filósofo como John Gray. Gray esteve em São Paulo e em Porto Alegre no início do mês na programação do Fronteiras do Pensamento, e além da honra de debater com ele após as apresentações, tive o privilégio de acompanhá-lo durante sua estada no Brasil. Entre uma discussão sobre a obra de Isaiah Berlin, seu mentor, e uma "fofoca" da convivência com gente como Margareth Thatcher, Gray contou-me um episódio que particularmente chamou minha atenção pelo que ensinava a respeito de muito do que passa por "debate público" em nossos dias. A cena deu-se em uma universidade (de menor expressão) em Londres, nos anos 80, e Gray dividia a mesa com o filósofo americano Richard Rorty. Rorty encerrava sua exposição inequivocamente convencido de que a única coisa necessária para que as pessoas aceitassem os princípios e valores liberais (e isso mais no sentido americano, de "progressista") era argumentar adequadamente com elas. "Afinal, como nossas mais caras convicções liberais, se bem apresentadas e defendidas, não convenceriam mesmo seus mais ferrenhos opositores?", parecia dizer Rorty. Após sua fala, um estudante muçulmano que estava na plateia pede a palavra e diz: "Conheço seus argumentos, passo nos exames sobre eles e não estou nada convencido de sua verdade".
O que esse episódio revela é a fragilidade e a dificuldade para conseguimos criar uma verdadeira cultura de debate público em que o convívio sob conflito e tensão não degenere em mera expressão de sectarismo, em que a defesa das liberdades e do pluralismo não seja concebida como um direito adquirido apenas por aqueles que pensam como nós e em que a incansável tarefa da argumentação honesta e clara e do exame cuidadoso de posições alternativas às nossas seja incorporada às práticas daqueles que pretendem contribuir, de alguma forma, com as questões que mobilizam a vida pública. Nada disso garantirá que as grandes divisões que marcam as sociedades complexas, quer no campo dos costumes, quer em seus fundamentos políticos e econômicos, possam ser resolvidas pura e simplesmente pela argumentação racional e equilibrada - essa ilusão racionalista em política, que está no DNA de praticamente todas as variedades de progressismos, é produto de uma incompreensão profunda da natureza humana e da vida em sociedade. É ilusório - e consideravelmente perigoso do ponto de vista das consequências - acreditar que basta apresentar um argumento logica ou juridicamente impecável em defesa do casamento gay para que um crente evangélico ou muçulmano fiel mude sua posição quanto ao tema (o mesmo valendo para os papéis invertidos).
O que os elementos que precariamente acabo de apresentar ao leitor podem efetivamente fazer é permitir que as complexidades sociais e humanas não sejam eliminadas pela eventual maior força de algum dos polos em atrito; é contribuir para que instituições sejam aprimoradas para melhor desempenho de suas funções sem que qualquer transformação relevante seja encarada como o apocalipse ou o marco-zero da humanidade (como os totalitarismos de esquerda e direita fizeram crer no século passado); é assegurar que a razoabilidade de nossa posição não esteja em sua infalibilidade dogmática (seja religiosa, seja intelectual, à esquerda ou à direita), mas precisamente na possibilidade de ser compreendida pelos que não pensam como nós e, mesmo assim, rejeitada, e que a construção dos consensos possíveis que esse tipo de debate vai formando sustenta-se na estabilidade e no vigor de instituições que permanecem para além dos conflitos. Essa não é uma posição "em cima do muro": pelo contrário, ela descende de uma linhagem de pensamento político sobretudo anglo-saxã (mas não apenas) em que convergiram elementos liberais e conservadores, sendo frequentemente hostilizada tanto pela esquerda jacobina ou marxista quanto pela direita autoritária e reacionária. Não sendo uma doutrina abrangente, um receituário de soluções políticas, econômicas, sociais e culturais - como os credos do marxismo e do ultraliberalismo econômico, por exemplo -, essa posição tende a atrair menos entusiasmo. Não tem e não terá seus defensores "bombando" em números de curtidas e compartilhamentos nas redes sociais. Mas é, a meu ver, o melhor patrimônio político de que dispomos.
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