* Professor de História na Unicamp. Autor de Pecar e Perdoar: Deus e Homem na História (Nova Fronteira, 2014)
Kayllane Campos tem 11 anos. No domingo, 14 de junho, saía de uma cerimônia de candomblé vestindo o branco cerimonial da sua fé. Devia estar orgulhosa com a avó mãe de santo e sua roupa imaculada. De repente, uma pedra atinge sua cabeça. Os agressores, dois rapazes, gritavam com Bíblias na mão. Apedrejar pessoas é uma barbárie antiga. Apedrejar uma menina escapa à compreensão do que é um ser humano.
Vamos sair do Rio de Janeiro e buscar algo similar. Uma jovem da mesma faixa etária de Kayllane está no conturbado Paquistão. Seu nome é Malala Yousafzai. Estamos no dia 9 de outubro de 2012. Um fundamentalista chama a menina pelo nome. Ela se vira e recebe três tiros à queima roupa. Sua face é atingida e sua vida corre risco grave. Sobrevive. Recebeu tratamento no Reino Unido. Sua causa? Defender o direto à educação das jovens. Sua grave ofensa? Afirmar que mulheres devem estudar. Em 2014, Malala recebeu o Prêmio Nobel da Paz.
Fanatismo e religião são velhos companheiros. A palavra fanático deriva da ideia de alguém pleno do espírito de algum Deus. Religiões monoteístas e missionárias são terreno fértil para isto. Meu Deus é o verdadeiro, logo, o seu é falso. Mais: devo pregar meu Deus e eliminar sua falsa concepção de divindade.
Não existe religião isenta de loucos, como, de resto, não existe atividade humana sem tais personagens. Às vezes, parece que as religiões são um ímã para toda espécie de desequilíbrio. Exemplos? Ashin Wirathu mora em Myanmar. Ele é um monge budista. Sim, a religião da não violência e da compaixão, dos vegetarianos que meditam o dia todo. Wirathu prega, aos gritos, o extermínio da minoria islâmica de Myanmar. É chamado de "Bin Laden do Budismo". Seu perfil no Facebook está tomado de expressões de ódio homicida.
Ódio religioso-étnico é clássico no Brasil. Judeus foram presos e torturados nas visitas do tribunal do Santo Ofício à Colônia. A primeira geração de espíritas kardecistas foi muito perseguida no Império, oficialmente católico. Canudos foi uma fogueira que, em 1897, destruiu, com ódio metódico, aqueles sertanejos que os republicanos consideravam "fanáticos". No Estado Novo, os terreiros de candomblé eram invadidos pela polícia. Em 12 de outubro de 1995, um bispo de Igreja Universal chutou ao vivo uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, em pleno dia da padroeira do Brasil. Recentemente, uma transsexual realizou uma performance na parada gay em São Paulo e colocou-se crucificada com os seios de fora. As reações chegaram à ameaça de morte.
Há pessoas com especificidades psiquiátricas e que cometem violências. Parece ser o caso de Carlos Eduardo Nunes. Ele assassinou o cartunista Glauco Vilas Boas e seu filho. O assassino alegava inspiração divina. São indivíduos do campo do manicomial, não do teológico. Porém, a violência religiosa não é explicável apenas por desequilíbrios como esquizofrenia, delírios persecutórios e atos paranoicos. Há mais coisas.
Atacar um inimigo constitui identidade. Soube-o perfeitamente Hitler, ao vociferar contra o judeu como bode expiatório. Inimigos unem um grupo. Sou o que sou, essencialmente, porque não sou o outro. É a lógica da bipolaridade que atinge católicos e protestantes, que lota um Gre-Nal, que antagoniza chimangos e maragatos. Homens heterossexuais falam de homossexuais com uma frequência quase estranha. É uma maneira de dizer ao grupo o que eu não sou, ou o que temo ser. Petralhas e coxinhas são de uma proximidade ética constrangedora, mas babam nos ataques recíprocos. Inimigos formam a possibilidade do meu grupo. São enunciados de união. Não estamos no campo apenas freudiano, mas no maquiavélico. O judeu elimina todas as minhas angústias e dúvidas sobre ser "ariano". O argentino me torna humilde. O gay me unge como "normal". Não ser é mais fundamental do que ser. Pior: meu ser depende do não ser do outro.
Mas a agressão contra Kayllane tem raízes bem tradicionais. Candomblé é associado a pessoas simples e a afrodescendentes. A agressão também é demofóbica, é um ódio social e racial combinados. Kayllane tem o que os franceses chamavam de "physique du rôle", a aparência que o agressor deseja. Para os olhos odiosos do apedrejador, ela é identificada com o fraco, com o pobre, com o afrodescendente e com o feminino. O agressor é sempre covarde: na agressão, exorciza sua fraqueza, suas dúvidas de masculinidade e sua angústia existencial. O velho e sólido racismo, a demofobia, a misoginia e o etnocentrismo encontram em Kayllane a vítima perfeita.
É uma maneira muito dura de amadurecer: Malala, Anne Frank, Kayllane... Na Terra de Santa Cruz, que se fantasia pacífica, o homem cordial descrito por Sergio Buarque de Holanda queima vivo o índio Galdino e apedreja na rua uma filha do candomblé. Está na hora do belo Dorian Gray dar uma olhada no aspecto podre do seu retrato escondido no sótão da consciência. Enquanto não fizer isto, pela educação ou pela coerção, continuará sendo um covarde, e covardes são sempre agressores em potência e em ato.