Falecido no dia 12, sexta-feira, o compositor Fernando Brant (1946 - 2015) conversou, em 2001, com o jornalista e crítico musical Juarez Fonseca. Na entrevista, publicada originalmente na revista Sucesso, de São Paulo, Brant falou sobre o início da carreira, a amizade que cimentou as relações entre os integrantes do Clube da Esquina e a vitalidade da música feita em Minas Gerais. A seguir, os principais trechos:
Qual sua letra preferida?
Numa obra de mais de 30 anos é impossível falar em letra preferida, embora algumas tenham me cativado mais. Outubro foi uma letra importante por confirmar uma profissão de fé que se abria para o jovem mineiro e brasileiro de 1967.
Essa foi a segunda. Antes dela veio Travessia. Diz a lenda que quando Milton Nascimento pediu para você fazer a letra para a música e você vacilou. Por quê?
Minha hesitação e insegurança iniciais se deviam ao fato de que eu nunca pensara na possibilidade de escrever letras de música, era algo que não estava nas minhas previsões.
Mas você já não arriscava poemas, não era um leitor de poetas?
O que escrevia era para meu exclusivo consumo, nada para ser levado muito a sério. Já tinha contato com Drummond, Bandeira, Cabral, Lorca, Fernando Pessoa e outros, mas não imaginava qual seria meu caminho. É certo que o mundo da cultura me atraía, literatura, cinema, música, teatro... Sabia das letras de Vinicius, Ruy Guerra, Capinam e Torquato. Quando conheci o Milton e ficamos amigos, ele já era cantor, músico e compositor de músicas que me deslumbravam. Suas composições tinham letras suas ou do Márcio Borges, cuja facilidade e talento também me impressionavam.
Além dos citados, que letristas você admira?
Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Paulo César Pinheiro, Abel Silva, Fausto Nilo, Murilo Antunes. Os também músicos Chico, Milton, Caetano, Gil, Paulinho da Viola, e muitos outros. Entre os mais recentes, Chico Amaral, Dado Prates, Nando Reis...
Fernando Brant foi parte fundamental do legado do Clube da Esquina
Em que momento você começou a se sentir letrista?
A primeira letra eu fiz para meu amigo Bituca (apelido de Milton Nascimento), sem perspectiva de gravação. Com o sucesso de Travessia no FIC, Milton foi contratado para gravar um disco e me deu outra música para letrar. Aí já vinha com uma responsabilidade maior, eu sabia que seria gravada, a coisa ficava mais séria. Outubro marca o início real de minha vida como letrista. Tanto, que é uma espécie de revisão do que eu falara em Travessia.
Como se formou o que depois passaria à história da MPB como o Clube da Esquina?
Milton conhecia todo o pessoal ligado à música em Belo Horizonte, Nivaldo Ornellas, Helvius Villela, Paulinho Horta, Marilton Borges, Pascoal Meirelles. Márcio Borges já estava lá. Eu ia atrás. Aí foram chegando Toninho Horta, Nelson Ângelo, Tavinho Moura. O Lô e o Beto Guedes de repente cresceram e apareceram. As coisas foram acontecendo aos poucos e espontaneamente.
A que você atribui o fato de o Clube permanecer unido até hoje?
Havia uma convergência de interesse pela música e laços fortes de amizade. "Mesmo se o tempo e a distância dizem não, qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar." Temos identidade com diversidade. A música do Milton é diferente da do Toninho, que é diferente da música do Lô, que é diferente da do Beto, que é diferente da do Nélson Ângelo e assim por diante. Mas existe uma identidade cultural que os amarra. Assim também com os sentimentos e as palavras. São músicas e amizades que permanecem por sua profundidade.
Como é a vida musical de BH?
Rica e intensa. As pessoas dos vários cantos de Minas, e muitas de vários pontos do Brasil, se encontram aqui para criar uma cultura variada e de qualidade. As coisas vivem acontecendo e com substância, nada de certa superficialidade costumeira que assola o mercado do Rio e São Paulo (onde também tem coisa séria, é evidente). Beagá é uma cidade ainda tranquila para se viver, as pessoas se conhecem e se encontram. Em música, Minas parece um moto-contínuo: tem sempre água boa jorrando.
E a geração pop que conquistou o Brasil: Skank, Jota Quest, Wilson Sideral? E o pagode do Só Pra Contrariar?
Esses grupos atestam o fato de que os vários tipos de música brasileira são feitos em Minas. Alguns com mais qualidade, outros com menos. Mas o profissionalismo de todos é evidente. Sou mais ligado ao pessoal do Skank, acompanho o trabalho de todos na medida do possível. Mas a música mineira tem muitos outros representantes de gabarito.
De onde vem a força da música mineira?
Vem das raízes culturais, da História, de Diamantina, Ouro Preto, Mariana, São João del Rey. E do fato de Minas serem várias, Gerais e Sertões. A cultura é um elemento muito forte na formação do Estado e a música sempre esteve presente, nas minas e nas igrejas, nos quilombos, nas festas, nas serenatas. Minas é música e vê ao mesmo tempo o quintal e o mundo. Eu já disse há muito tempo: "sou do mundo, sou Minas Gerais".
Qual sua opinião sobre a crítica crua da realidade social brasileira feita por grupos como Racionais MCs e Planet Hemp?
É uma forma de manifestação das ideias deles, às vezes bem feita, às vezes não. É bom e salutar que as pessoas expressem opiniões, próprias ou geracionais. Nem sempre porém é música. Ou boa música. Mas pode ser arte das boas. A música sempre está engajada a alguma coisa maior que qualquer tendência ou opinião: a vida. Tudo que é humano interessa ou deve interessar à música e à cultura. Em meu trabalho vejo que tudo que existe ou existiu ao nosso redor, em nosso tempo, foi assunto. Quanto ao engajamento político ou social das letras de música popular, meu critério de avaliação valoriza principalmente a qualidade artística. A obra de qualidade, engajada ou não, merece permanecer.