O paulista André Liohn, 40 anos, tornou-se, em 2012, o primeiro - e até agora único - sul-americano a ganhar o Robert Capa Gold Medal Award, mais importante prêmio mundial para fotografia de guerra. A série revelava o cerco a Misrata, na Líbia, quando Liohn acompanhava rebeldes que tentavam derrubar o regime de Muamar Kadafi. No fogo cruzado, foi ferido com um tiro. A câmera permaneceu ligada - e registrou a cena.
Nascido no interior de Botucatu, de família pobre, Liohn deixou o Brasil aos 20 anos para morar na Noruega. Apenas aos 30 anos despertou para a fotografia, registrando usuários de heroína na Europa e a catástrofe humanitária na Somália. Depois de percorrer vários países em guerra, hoje Liohn se dedica a esmiuçar a violência urbana no Brasil - o projeto Revogo. O fotógrafo irá palestrar na próxima quarta-feira, às 10h15min, no Congresso de Fotografia Alasul, no Centro de Convenções do Hotel Plaza São Rafael (Avenida Alberto Bins, 514, Porto Alegre). Na semana passada, Liohn conversou com o PrOA, por telefone, de São Paulo.
Suas fotos têm forte caráter político, algo que foge da pretensa isenção defendida por muitos no fotojornalismo. Como você expressa esse posicionamento por meio da imagem?
Há um movimento na fotografia jornalística. O ápice disso foi o Prêmio World Press deste ano, em que o fotógrafo dinamarquês Mads Nissen ganhou com uma história sobre homofobia na Rússia. Uma história fantástica, adoro o fotógrafo, é um dos melhores, mas a imagem premiada não tem nada a ver com violência, com homofobia. É um momento de amor entre duas pessoas. Poderiam ser dois irmãos, não necessariamente dois homossexuais que sofrem preconceito na Rússia. O mercado de fotografia começou a se higienizar. As imagens estão cada vez mais tratadas, pensando no que o público vai digerir ou não. O verdadeiro problema, o fotógrafo assumindo a responsabilidade de chegar perto, de enfrentar todas as barreiras, econômicas, de segurança, éticas, para documentar algo que está acontecendo, vem cada dia mais sendo negligenciado. Em jornais como The New New York Times, as fotos são completamente distantes do problema. São pitorescas, a cor é forte, a composição é elaborada, mas estão fora do problema que está acontecendo ali. Ainda que o fotógrafo esteja próximo.
Na guerra, a imagem, ao sofrer um tratamento, perde sua crueza? Há uma pasteurização das imagens?
O tratamento e o filtro atrapalham, não há dúvida, desvalorizam o ato em si no fotojornalismo. Mas é além disso. Vejam as fotos que venceram o World Press e todos os outros prêmios. Com exceção do Prêmio Robert Capa, que mantém essa tradição muito viva (de valorização da crueza da imagem). Este ano, o vencedor foi Marcus Bleasdale, com um trabalho na República Centro-Africana. São muito próximas dos problemas que as pessoas estavam vivendo.
Você mora na Itália, correto?
Estou há um ano no Brasil fazendo um trabalho sobre violência. Será exibido em uma mostra, em outubro, em São Paulo. Minha intenção foi usar o método da fotografia de guerra para documentar a violência no Brasil. A partir disso, quero questionar o que está acontecendo. As pessoas sempre dizem que no Brasil há uma guerra velada, o números de mortes no Brasil se aproxima ao da guerra. Quero questionar esta certeza.
Esse trabalho já foi todo coletado?
Praticamente todo. Fiz fotos de todas as regiões do Brasil, inclusive aí em Porto Alegre. Fiz com os menores que conheci na Fase. Depois, eles me levaram a alguns lugares.
Como você define esse método e que diferenças encontrou ao fotografar conflitos internacionais e a violência urbana?
O método da fotografia de guerra, para mim, é essa proximidade muito forte do lado emocional. Você se entrega muito emocionalmente, porque as situações exigem isso, a proximidade física e a honestidade visual do que eu produzo. Quando as pessoas dizem que no Brasil tem uma guerra velada, eu discordo. O Brasil não vive uma guerra. O que tem é um caso crônico de delinquência. A delinquência e a guerra, apesar de terem semelhanças nos efeitos que produzem, são completamente diferentes. Na guerra, o diálogo não serve mais para impedi-la de continuar. O diálogo é completamente impossível. Aqui, no Brasil, apesar de a delinquência causar efeitos semelhantes aos da guerra, o Estado, a sociedade, ainda poderiam esticar os braços e colocar pé firme.
O risco de morrer, a exposição à violência, a relação com as fontes, como isso afeta a prática jornalística na área de guerra, uma cobertura diferente da reportagem do cotidiano?
A segurança decide como você vai trabalhar. Em lugares como o norte da Síria e do Iraque, você simplesmente não tem como trabalhar. A segurança não existe. No Brasil há lugares onde você não pode entrar. Até por isso é importante que o fotógrafo que vai fazer esse tipo de trabalho saiba muito bem o que está fazendo, porque o que acontecer com ele pode repercutir em como o público vai entender a história. Se eu quero fazer um trabalho em uma favela, o público vai entender que ali só moram monstros. E não é verdade. Nas favelas não moram só monstros. Mas se eu for fazer esse trabalho e só fotografar rostos de crianças dando risada, as pessoas vão achar que só tem criança assim. O que também não é verdade. O fotógrafo que vai fazer um trabalho em situação de risco tem de saber até que ponto ele quer assumir esses riscos.
Até que ponto você assume riscos?
Já assumi vários. Hoje, acho que já assumi a parte de riscos que eu tinha de ter assumido.
Então você está mais cauteloso?
Não cauteloso. Mas houve um momento da minha vida em que os riscos foram fundamentais para poder expressar o que estava acontecendo. Na Somália, onde trabalhei vários anos no momento em que todo mundo estava pensando no Iraque e no Afeganistão. E ter trabalhado lá sem correr riscos não ia atrair a atenção de jornais e de editores porque eles tinham muito material que vinha do Iraque e do Afeganistão. Não significava correr riscos por correr riscos, mas chegar próximo aos problemas da Somália que pudessem mostrar que aquele lugar também merecia atenção. Tenho muita preocupação de que o trabalho que eu faço durante um determinado período tenha um legado que repercuta até hoje. Ainda hoje o trabalho que fiz em oito anos em zonas de conflito serve para me aproximar de gente mais jovem. Hoje, minha maior preocupação é com meus amigos que estão começando na profissão e estão em campos de batalha.
Muitos iniciantes querem cobrir esse tipo de história. O que você diz para esse pessoal?
Hoje, vivemos em uma sociedade de extremos. Sabe aquela frase: "É melhor morrer tentando do que nunca ter tentado?" Pegando esta frase, fica fácil de entender a exaustão que o mundo vive hoje. Exaustão ambiental, econômica, emocional. Chega-se a um ponto em que a gente acaba morrendo mesmo. Na hora em que você depara com o momento de morrer, não é o que se gostaria de passar, a gente queria poder continuar tentando. Ninguém toma Redbull para matar a sede, a gente toma porque quer pular de paraquedas, fazer de conta que fazemos aquelas coisas fantásticas. Na nossa vida, a gente tem esses produtos que nos estimulam a consumir a vida de forma muito intensa. Se você não estiver consumindo a vida de forma muito intensa, você não está protagonizando a vida. Isso é ruim. Entra a questão da geração GoPro. O slogan é da GoPro é "Be a hero" (seja um herói). Estamos vivendo uma síndrome do protagonismo. Se a gente não tiver ido para algum lugar e não tiver voltado com uma história que nos transforme em heróis, não cumprimos um papel.
Você foi ferido em Misrata, na Líbia, quando acompanhava rebeldes que tentavam derrubar o regime de Muamar Kadafi. Foi seu momento mais perigoso?
Aquele foi um. Outro foi o dia em que fui preso na Síria por um grupo de rebeldes. Mas o momento mais difícil foi quando decapitaram James Foley (fotógrafo americano morto pelo Estado Islâmico em agosto de 2014). Eu estava na Itália, mas foi o pior dia da minha vida. Trabalhamos bastante juntos, era um amigo querido.
O uso de tecnologia em áreas de guerra, GoPro, drones, contribui para o distanciamento que você tanto critica?
Há uns cinco anos, um americano chegou à Somália com algo parecido com um drone. Na época, achei muito legal. Eles conseguiram voar por áreas controladas pelo grupo Al-Shabah. A possibilidade de ver situações do mundo, da vida, de perspectivas novas é fantástica. O problema é como trazer isso para uma reflexão humana e não tecnológica ou estética. Vejo movimentos, pessoas, formadores de opinião, falando sobre as maravilhas da capacidade tecnológica. Mas ninguém está preocupado em refletir sobre isso a partir de uma perspectiva humana. As pessoas falam que é só uma ferramenta. Ferramentas têm impacto. Da mesma forma que falamos do impacto ambiental dos veículos que usamos, dos remédios e da comida, precisamos começar a conversar sobre os impactos culturais das imagens que produzimos.
Três perguntas rápidas:
Pré-produção ou pós-produção?
Pré-produção.
Três referências mundiais no fotojornalismo hoje.
James Nachtwey, sem dúvida. Don Mccullin e Antonin Kratochvil.
E no Brasil?
Prefiro não... (risos)