* Professor e tradutor. Escreve mensalmente no PrOA
1. Quem contempla a Basílica di San Marco e o Palazzo Ducale desde a chamada Punta della Dogana, compreende bem por que esse complexo arquitetônico encantou de tal modo o pintor inglês J. M. W. Turner (1775 - 1851) a ponto de nos render um conjunto de aquarelas, de óleos e de desenhos de encantadora energia e beleza. Depois de fazer da vista parte do meu roteiro diário, contornando a imponente Chiesa della Salute, tive o privilégio de partilhar da visão de Turner, na Tate Britain, em Londres. The Bridge of Sighs, the Ducal Palace and Custom-House, Venice, exibido por Turner em 1833, mais de uma década depois de sua viagem veneziana, nos dá a ver tudo isso pelas cores e pelas luzes que fizeram do pintor um darling da Royal Academy e dos colecionadores da época. Turner me transportou de volta a Veneza naquela sala da Tate.
2. Os primeiros meses deste 2015 que vai avançando, no entanto, estariam a requisitar um outro Turner para pintar uma outra Itália: a que serve de palco para a tragédia de milhares de homens, mulheres e crianças africanos que tentam, todos os dias, e desde há muito, ingressar no país pelo Canal da Sicília, chegando a Lampedusa, a Catânia ou a outros portos. Quando chegam: o mês de abril foi particularmente cruel em matéria de terror marítimo: foram mais de 11 mil migrantes resgatados na costa italiana apenas nos primeiros 17 dias do mês. E, acrescente-se, mais de 1,5 mil mortos nos primeiros meses do ano. No dia 18 de abril, entre a costa da Líbia e a ilha italiana de Lampedusa, por exemplo, o capitão do navio que transportava os imigrantes causou de maneira intencional e ainda mais criminosa o acidente que resultou na morte de mais de 800 pessoas, muitas das quais mantidas aprisionadas e desde sempre condenadas à catástrofe naquelas águas. "Crise humanitária" é mais que eufemismo.
3. Lendo os jornais do dia no café em que sou sempre atendido por uma das três imigrantes moldavas que lá trabalham, vou lendo os impasses do governo italiano e da União Europeia para lidar com o caso. Há um poderoso mercado de tráfico humano na África e no Oriente Médio, altamente beneficiado pela violência que virou forma de governo na Líbia e na Síria. Há fortes indícios do envolvimento da máfia italiana em negócios com os traficantes e no aliciamento dos refugiados. Há um nada discreto racismo muito bem focalizado contra os africanos que conseguem o estatuto de refugiados e ficam por aqui. Mas a verdade é que não consigo tirar os olhos das fotografias do mar feito em ruína e cemitério. Anônimos, sem que lhes vislumbremos os contornos, os corpos que ali aparecem fazem-me esquecer Veneza, Londres, a Accademia e a Tate: vejo apenas a foto do cadáver de um bimbo (variação de bambino, "criança") resgatado, numa imagem distanciada, toda a cena envolta pelo mesmo anonimato dos números dos corpos (poucos) recolhidos da água.
4. O Turner de que precisaríamos para dar conta desta outra Itália teria de ser o homem que fez da dissolução dos traços o triunfo da energia na pintura, o criador que deu mais vida às massas de cores em seus óleos do que muitas obras contemporâneas supuseram fazer com objetos reais repousando sobre as telas em excêntricas colagens. O Turner extremo, nas palavras de um grande crítico, "o pintor do caos, da conflagração e do apocalipse": foi este Turner (que o ator Timothy Spall interpretou à perfeição no excelente Mr. Turner, do diretor Mike Leigh) que nos legou uma das mais potentes telas do século 19: Slave Ship, o navio de escravos que vemos ao fundo, mergulhado pelas ondas de cores que emanam de céus e mares, enquanto os corpos dos escravos, lançados ao mar pelo capitão para lucrar com o seguro, confundem-se com o movimento das águas, com os raios de luz e com a nossa íntima perplexidade.
5. Este Turner saberia nos fazer ver que o século 21 vai avançando e, para surpresa dos entusiastas do progresso moral da humanidade, impõe-nos horrores velhos nossos conhecidos: o tráfico de seres humanos, com renovadas versões de escravismo, levas migratórias cuja absorção é dificílima ou, pior, indesejada, o triunfo do terror, anônimo ou não, como forma de fazer política e religião, toque final desta pintura sombria que se desvela diante de nossos estupefatos e já cansados olhos. Nossa vida moral parece ter virado a página para o século errado, conduzindo-nos novamente ao século 19. E desta vez, para nossa maior tristeza, sem um Turner capaz de nos dar a arte que serviria de voz para o grito, de visão para o que se oculta, de imagem para o que o discurso não alcança. Talvez servisse até de consolo, se consolo ainda houver para o nosso tempo.
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