Diferentemente de outras tragédias dos tempos modernos, como o Holocausto perpetrado pelos nazistas, o genocídio armênio é um tema ainda pouco explorado pelo cinema, especialmente em filmes de ficção. À exceção de raros títulos como Ravished Armenia (1919) - produção holywoodiana escrita e estrelada pela jovem armênia Aurora Mardiganian, sobrevivente do massacre turco que encenou sua própria história na tela -, o episódio costuma ser citado apenas como pano de fundo da história, caso dos longas Terra do Sonho Distante (1963), de Elia Kazan, e Mayrig (1991), de Henri Verneuil. Somente em 2002, no excelente drama de guerra Ararat, esse assunto tabu foi abordado de frente por uma grande produção internacional.
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O filme do diretor canadense de origem armênia Atom Egoyan assemelha-se à romã que um dos personagens leva consigo: cada semente pode ser consumida como se fosse o fruto completo. Em princípio, a produção narra o trágico destino de uma coletividade há um século - mas, aos poucos, fica claro ao espectador que os largos traços que esboçam esse grande painel histórico servem também para detalhar os perfis íntimos de indivíduos contemporâneos. Para Egoyan, somos todos iguais na dor, nações ou pessoas. O núcleo duro da trama em torno do qual gravitam os personagens é a rodagem no Canadá de um melodrama de época sobre o Cerco de Van, um dos sangrentos episódios do genocídio armênio promovido pelos turcos nos domínios do Império Otomano entre 1915 e 1918, que causou a morte de quase 1,5 milhão de pessoas. Um célebre diretor armênio, Edward Saroyan (interpretado por Charles Aznavour, de origem armênia), mobiliza uma grande produção para levar ao cinema esse crime ainda hoje quase silencioso.
A rodagem de Ararat (o filme dentro do filme) é o ponto de inflexão dos personagens: o ator de ascendência turca Ali (Elias Koteas) vai interpretar um cruel comandante otomano, a acadêmica Ani (Arsinée Khanjian, mulher de Egoyan) servirá de consultora histórica, Raffi (David Alpay), filho de Ani, será assistente de direção, o produtor Rouben (Eric Bogosian) cuidará das adaptações da trama. O concerto comum em torno da grande história, porém, tem que se conformar às realidades domésticas de cada um - ao mesmo tempo em que modifica gradativamente essas mesmas vidas. É nesse trânsito entre o monumental e o mínimo, o excepcional e o cotidiano, que Egoyan exibe com mais acerto sua maestria como narrador. Saroyan, por exemplo, quer registrar a tragédia pessoal em imagens - sua família foi vítima do genocídio -, mas seu filme será exageradamente sentimentalista, repleto de liberdades históricas e geográficas. O Monte Ararat do título, por exemplo, apesar de não se localizar próximo da aldeia de Van, aparece ao fundo das cenas. Mas isso não importa: é assim que o realizador recorda do que ocorreu. Já para Ani, autora de uma biografia do pintor armênio-americano Arshile Gorky (1904 - 1948), concordar com a ficcionalização da vida de seu objeto de estudo, que vira personagem do filme de Saroyan, coloca-a diante de um dilema moral: popularizar a figura do artista ou manter a integridade de sua memória? A pesquisadora ainda enfrenta o ódio da enteada, Celia (Marie-Josée Croze), que a acusa de provocar o suicídio do pai. Finalmente, Raffi tem que lidar com o passado para compreender o presente: o pai foi morto ao tentar assassinar um diplomata turco, ato que considera inconcebível.
Todos esses dramas apontam para a mesma fratura: a incompreensão da própria história, o desconhecimento do que aconteceu antes - imagem de ausência retratada pelo quadro The Artist and His Mother, tela aparentemente incompleta de Arshile que Ani estuda com minúcia. "Embora caiba às mães a transmissão da cultura aos filhos, o filme é sobre a transmissão do trauma, como ele é repassado de uma geração a outra", disse Atom Egoyan em uma entrevista. Como escapar a esse ciclo? O cineasta acredita no poder da narração, da conversação, da elaboração. Ao ser interpelado por um funcionário da alfândega (Christopher Plummer), Raffi se vê obrigado a contar sua história e a de seu povo para retornar ao Canadá. O processo de purgação é evidente: sem o reconhecimento pelo outro e por nós mesmos de nossa biografia - ainda que incompleta e pontuada por fabulações -, é impossível avançar.
Da mesma forma que os filhos demandam a identidade paterna, os armênios esperam até hoje a admissão de seus crimes pelos turcos. Os ressentimentos acumulados e recalcados acompanham-nos onde quer que estejamos.
Avista-se o Ararat de qualquer ponto do planeta.