* Escritor e dramaturgo, autor de Os Famosos e os Duendes da Morte (2010). Escreve mensalmente no PrOA
É domingo de manhã. A casa está hiperaquecida, agarrada ao pé da cordilheira. Passamos um longo tempo deitados, tentando entender onde estamos. Olho para o teto e me pergunto como vim parar aqui. Os pingos de chuva caem sobre o zinco. Acordar longe de casa, em um lugar nunca antes visitado, é sempre um pouco estranho. O corpo demora para entender. Ainda na cama, ligo o celular. Do lado de fora da casa faz cinco graus.
Na tela, palavras estranhas sobre o país onde vivo. "Votar o aborto só por cima do meu cadáver", declara o evangélico agora presidente da Câmara. Uma feminista sugere torná-lo cadáver, passar por cima do corpo, e votar. Outros, desinformados ou claramente golpistas, pedem o impeachment da presidenta. Buscam base legal para uma derrota que ainda não foi engolida. Sobre regulamentação da mídia ou reforma política, quase ninguém consegue debater. Ouso iniciar uma discussão, mas não. Meu Facebook se converteu em um espaço de pouca inteligência. Visto o mais pesado dos casacos e desço as ladeiras da cidade mais ao sul do mundo. Ushuaya é um povoado triste.
Não é preciso determinação para descer a montanha, mas o frio faz sempre não querer sair de casa. Acumulo forças para caminhar contra o vento gelado que vem da Antártida. Debaixo das nuvens baixas, neva sobre a neve eterna. Me pergunto se algum dia voltarei para cá. Não saberia responder. Um cachorro corre até nós, cheira as nossas pernas, depois vai embora. Não vimos baleias. Quase não procuramos por elas. A igreja bate o sino. Estridente, a fé conclama. Estou na terra do Papa Francisco. O cara é adorado mundo afora, mas são muitos os argentinos que não conseguem dissociá-lo de sua postura durante a ditadura militar no país. Os mais politizados, aqueles que viveram e estudaram a história, não compram a benevolência do líder católico.
Venta conforme o porto se aproxima. O mapa continua dobrado no bolso de trás da calça. Tenho vontade de comer alguma fruta doce, alguma folha verde escuro, mas quase tudo aqui é movido à farinha. No fim do mundo, tudo demora para chegar. O gelo dificulta o plantio e produtos frescos são artigo de luxo. Entro no café e escolho a última mesa vazia. A torre da igreja segue ecoando pelas ruas da última cidade antes do gelo. Olho para o céu. Agora as nuvens abandonaram o pé da cordilheira deixando mais um rastro de neve sobre as montanhas.
Gosto de comprar livros em aeroportos e estações de trem. No pequeno aeroporto da cidade de Buenos Aires, escolho El Marido Americano, de Paula Winkler. Nenhum dos atendentes da pequena megastore é capaz de indicar um jovem autor argentino que seja pop e seja bom. Foi assim que descobri Fabian Casas na Boutique del Libro de Palermo, anos atrás, enquanto passava as tardes entre cafés, arquivos de computador e sessões no Bafici. Procurando por um Nick Hornby portenho, cheguei ao cara. Paula Winkler não é Fabian Casas, mas é tão simples quanto ele.
O café não cansa de lotar. Aproveitando o calor e o wi-fi, turistas do mundo inteiro esperam por uma mesa. Ignoro a espera alheia e abro o livro. Do outro lado do vidro, o sol ameaça sair. Dois rapazes locais passam vestindo shorts muito curtos para o frio que agora faz. Imagino que a cidade deva ser bonita no verão. Depois me dou conta de que estamos no verão. Termino o livro. Fecho. Orgulhoso de mim, bato uma foto da capa de El Marido Americano. Me pergunto se gosto da autora, mas não saberia responder. Ouso postar no instagram, mas, felizmente, meu celular não reconhece a rede.
Um jovem casal olha para mim e depois olha para os três lugares vagos em minha mesa. Sorrio, consinto, e eles tomam seus lugares. Três mochilas ocupam a quarta cadeira. Apresentam-se alemães, mas não parecem muito dispostos a conversar. A regra em situações assim é sempre manter o silêncio. Alemães dominam a arte de compartir sem ocupar espaço. Cada um saca o seu celular antes que o garçom chegue à mesa. Pedem a senha antes de escolher o café. Não tenho muito para onde olhar. Meu celular não conecta e o livro acabou.
Conectado, o casal mostra as telas, um para o outro. Aprovam o que veem. Depois, cada um retorna ao seu próprio aparelho. Percebo a afetividade da máquina agindo sobre o sujeito. Juntos, cada um mergulha em seu próprio mundo. Penso que estou vendo, mas, inevitavelmente, sou tragado para dentro do que me possui. Olhar é também tornar-se um pouco.
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