* Professor titular de Ética e Filosofia Política na USP. Escreve quinzenalmente no PrOA
Na década de 1990, o ministro da Saúde José Serra conseguiu proibir a propaganda de fumo na rádio e televisão. Venceu enormes interesses econômicos. Mas, no meio disso, veio uma discussão: pode o Estado impedir alguém de fazer mal a si próprio? Se um adulto, sabendo dos riscos que corre, quiser fumar? Podemos obrigá-lo a ser saudável? E além do mais, que conceito de saúde é esse? Porque, depois de proibir o fumo, proibiremos o que mais? Obrigaremos todos a fazer ginástica, a comer salada? Essa discussão continua.
A questão é boa, mas despropositada. Primeiro, ninguém jamais cogitou de proibir alguém de fumar. O máximo que se fez foi proibi-los de exportar para os pulmões alheios a fumaça cancerígena. Na verdade, a discussão se baseia num velho truque retórico, manjadíssimo: inventa-se um inimigo, que é demolido com argumentos aparentemente tentadores. Só que o inimigo não existe. É apenas uma montagem. Dificultar as ações dos fabricantes de cigarro para seduzir seu público nada tem a ver com retirar liberdade de indivíduos.
Além disso, não estamos num mundo fantasioso em que todos somos absolutamente livres para escolher a rota A ou B. A publicidade do cigarro sempre trouxe aventura e glamour. Marlboro transformava você em cowboy, Camel levava você de Land Rover pela África. Contra essa sedução em massa, não fumar não tinha charme nenhum. Na suposta liberdade de eu escolher o que quero, inclusive a não saúde, os dados estavam viciados.
Li estes dias Regras da Comida, de Michael Pollan, que dá 64 regras para viver melhor comendo melhor. É um libelo contra a comida industrializada. A comida não processada, diz o autor, melhora sua saúde. Você tem mais prazer na vida. Ora, lendo o livro, percebi que várias políticas de defesa da saúde alimentar só podem ser impostas por governos. Consumidores conscientes podem adotá-las, mas serão uma gota no oceano. Assim, cabe deixar a escolha da comida saudável só à decisão de cada um? É ingênuo ignorar o poder imbatível dos alimentos processados, que vem de muito açúcar, muita gordura, muita propaganda na mídia.
Está aumentando a consciência de alguns consumidores, mas as indústrias do alimento parecem mais poderosas e difíceis de enfrentar do que as produtoras de tabaco. Afinal, o fumo é um produto só, a alimentação são muitos.
O que fazer? Pensei em duas ou três medidas que em nada tiram a liberdade do indivíduo. Primeira, ter informação plena sobre os alimentos. Saber se são transgênicos ou não é apenas uma das questões. Segunda, haver divulgação constante das regras da boa alimentação, como por exemplo as vantagens de saladas e grãos. Terceira, uma tributação inteligente. Devemos taxar o refrigerante bem mais que o suco de frutas. Assim, o suco renderá mais ao produtor do que a garrafa de gasosa, mas custará menos ao consumidor - para estimular um a produzir mais, outro a consumir mais. Ninguém pode substituir o Estado nestas tarefas. E contra o alimento processado, nenhuma andorinha solitária faz verão.
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