A Advocacia-Geral da União (AGU) começou a semana imersa numa polêmica. Responsável pela defesa legal do governo, o órgão anunciou investigação contra o jornalista Alexandre Garcia, por suposta "disseminação de informações falsas" em declarações a respeito da tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul. A apuração será tocada pela Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD), órgão instituído no início do ano pela AGU para representar a União no enfrentamento à desinformação, no impedimento de tentativas golpistas e na preservação dos poderes e de seus membros. E o uso desse novo organismo despertou polêmica e críticas por parte de estudiosos da comunicação e da liberdade de imprensa.
Alexandre Garcia é o primeiro caso notório a ser investigado pela PNDD. Isso acontece porque o jornalista colocou a culpa da tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul em gestões petistas do governo federal. "A chuva foi a causa original. Mas no governo petista foram construídas, ao contrário do que recomendavam as medições ambientais, três represas pequenas que aparentemente abriram as comportas ao mesmo tempo", disse o jornalista, no programa Oeste Sem Filtro, da Revista Oeste, no sábado (8). Ele também defendeu que o episódio seja investigado pelas autoridades.
A empresa que opera barragens no Rio das Antas negou as especulações a respeito das estruturas, até porque as represas não têm comportas. A Defesa Civil e especialistas em assuntos hídricos também descartaram essa hipótese.
O advogado-geral da União, Jorge Messias, determinou imediata instauração de procedimento "contra a campanha de desinformação promovida pelo jornalista". É possível que não haja ação judicial, mas algo menos drástico, como um pedido de direito de resposta. É o que disse a GZH o secretário de Comunicação Social do governo Lula, Paulo Pimenta. Ele argumenta que o governo não pode naturalizar a desinformação intencional:
— Ela pode causar danos e pânico na população. A AGU analisa qual o melhor caminho. Me parece que o caminho mais adequado, nesse caso, pode ser o direito de resposta, para garantir à população o acesso às informações corretas.
Investigação de jornalistas
O uso da AGU para fustigar críticos ao governo federal chama a atenção, agora, pelo uso do seu novo braço, a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD). Mas essa tática não é nova. Na gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL), em junho de 2020, o então gestor da controladoria, André Mendonça, determinou a investigação do jornalista Guga Noblat e do cartunista Aroeira com base na Lei de Segurança Nacional (LSN), por causa de charge em que o então presidente pichava uma suástica sobre o símbolo da Cruz Vermelha. A Justiça arquivou a investigação em maio de 2021.
A AGU também foi mobilizada em acusação do governo Bolsonaro contra o jornalista Hélio Schwartsman, por suposto crime previsto na LSN, quando ele publicou coluna no jornal Folha de S.Paulo intitulada "Por que torço para que Bolsonaro morra" (ele ironizava o fato do presidente ter contraído covid). O inquérito foi suspenso pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em agosto daquele ano. A novidade, agora, é a criação da Procuradoria para esse tipo de ação e o subjetivismo do que seja "defesa da democracia".
Especialistas analisam
A reportagem buscou especialistas e entidades para analisar o uso da novíssima PNDD em investigações contra desafetos do governo (sejam eles jornalistas ou outras pessoas suspeitas de divulgar boatos). Nenhum dos entrevistados considera que ocorreu, no episódio específico, qualquer ameaça à democracia. Eles mostram estranheza com o uso da Procuradoria para esse fim.
Marcelo Rech, presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), diz que a entidade acompanha com preocupação a criação da procuradoria e questiona a própria existência do organismo. Ele ressalta que, embora a desinformação seja um problema real que desafia as democracias, não ocorreram discussões prévias com setores potencialmente envolvidos e aponta também o risco de que interpretações possam levar à censura ou intimidações.
— A ANJ entende que não cabe a governos pretenderem criar uma linha divisória sobre o que é verdade ou não. Nenhum governo democrático definiu com precisão até hoje as fronteiras sobre o que é desinformação e o que são críticas ou manifestações de opinião. Ao contrário, são os regimes autocráticos que começaram a fazer esta regulação, sempre com o sentido de se defender de críticas ou conteúdos que não lhes são simpáticos — pontua.
— Esperamos que o decreto que criou a PNDD seja revisto, no sentido de se evitar a interpretação de que o novo governo persegue objetivos que não se coadunam com a defesa da liberdade de imprensa e de expressão. Um ecossistema robusto de jornalismo profissional e independente é o melhor antídoto contra a desinformação — acrescenta Rech.
Jornalista e professor de graduação e pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, Eugênio Bucci ressalta que considera "delirante" a teoria de que a culpa das enchentes no Rio Grande do Sul deva ser atribuída a barragens construídas no passado em gestões ligadas ao PT.
Em momento algum, o Poder Executivo pode chamar para si a posição de árbitro da democracia. Não é ele que resolve o que é democrático e o que não é democrático.
EUGÊNIO BUCCI
Jornalista e professor
Ressalvado esse ponto, ele acha preocupante, de outra parte, a notícia de que um órgão da AGU vai instaurar providências contra o espalhador de tais boatos. Bucci considera que o Poder Executivo, ao qual pertence a AGU, não tem mandato para isso. Cabe a ele agir com moderação em relação ao debate público, já que trabalha para a democracia, está subordinado à democracia. O analista de mídia ressalta que o presidente é eleito pelo povo, por meio dos processos decisórios próprios da democracia.
— Mas, em momento algum, o Poder Executivo pode chamar para si a posição de árbitro da democracia. Não é ele que resolve o que é democrático e o que não é democrático, assim como não é ele que decide o que é e o que não é verdade. O governo anterior, de tendências declaradamente autoritárias, valeu-se da AGU para intimidar jornalistas. Essa prática não deveria ser retomada, por mais destrambelhados que sejam alguns comunicadores — pondera Bucci.
A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) tem debatido a ação da Procuradoria na AGU. A entidade ainda não externou posição oficial, porque há um debate sobre ações do governo que envolvam jornalistas e a questão é complexa.
Suportar críticas
Taís Gasparian, advogada que atua na defesa de jornalistas e veículos de imprensa (vencedora do Prêmio Liberdade de Imprensa, da ANJ, em 2022), acredita que a PNDD foi criada em janeiro deste ano com "o nobre objetivo de ampliar o papel da AGU no fortalecimento da democracia brasileira". Ela acha isso salutar, a princípio, mas discorda do encaminhamento dado a assuntos como o do jornalista em questão. A especialista considera que o episódio de jeito algum desafiou a democracia.
— A sanha pelo controle da informação não pode ultrapassar a linha do razoável. Homens públicos, órgãos governamentais e partidos políticos deveriam entender, de uma vez por todas, que são obrigados a suportar críticas — opina Taís.
Homens públicos deveriam entender, de uma vez por todas, que são obrigados a suportar críticas
TAÍS GASPARIAN
Advogada, vencedora do Prêmio Liberdade de Imprensa em 2022
Patrícia Blanco, do Instituto Palavra Aberta (que defende a liberdade de expressão) define como "lamentáveis" declarações como a das barragens, mas discorda que a PNDD seja usada para questionar o episódio.
— A Procuradoria da AGU é para defesa da democracia e me parece desproporcional o uso dela para questionar declaração de um jornalista, mesmo que a fala seja equivocada. Me preocupa bastante — conclui.