Especialistas em licitações, consultados por GZH, encaram com estranheza o número de especificidades exigidas no edital que resultou na aquisição de cinco veículos Audi A4 S Line, híbridos, por parte do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS). Cada veículo desses custará R$ 358 mil, o que motivou críticas de integrantes do Legislativo (pelo custo) e abertura de procedimento investigatório por parte do Ministério Público de Contas (MPC).
O edital previa compra de um sedan executivo grande, capaz de levar cinco pessoas. Uma das exigências do certame era de que os carros tivessem no mínimo motor de 2.0 cilindradas e 203 cavalos de potência.
As outras condições estabelecidas pela concorrência pública:
- Potência mínima de 203 cavalos
- Motorização mínima nominal 2.0
- Câmbio tipo automático
- Distância entre eixos de 2.820mm
- Comprimento de 4.760mm
- Largura de 1.846mm
- Altura de 1.400mm
- Capacidade para cinco ocupantes
- Quatro portas laterais
- Direção elétrica e/ou hidráulica
A quantia de particularidades acabou eliminando boa parte dos concorrentes na disputa, restando o Audi. Alguns exemplos de automóvel sedan executivo pinçados pela reportagem de GZH, a partir da conversa com os especialistas, mostram como as cláusulas do edital podem ter afunilado as opções de escolha:
- O Corolla, que atende a exigência de ser híbrido (motor elétrico e a combustão), não se enquadra no tamanho (tem 4.630mm de comprimento, 1.455mm de altura e 1.780mm de largura), nem na potência (o motor do modelo Altis Premium Hybrid CVT 1.8 tem 101 cavalos e não os 203 exigidos). O preço (R$ 174 mil, na versão mais completa) é bem menor que o do Audi.
- O Toyota Camry XLE 2.5 também tem versão híbrida (motor elétrico e a combustão), mas não se enquadra na potência (tem de 178 a 194 cavalos). O comprimento é compatível com o exigido pelo edital (tem 4.885mm) e a largura quase atinge o exigido (tem 1.840mm, seis a menos que o especificado). A distância entre eixos supera a exigência do edital (tem 2.825mm). O preço (R$ 331 mil) é ligeiramente inferior ao do Audi.
- O Mercedes C300 AMG Line 2.0 tem potência compatível (258 cavalos), é híbrido, mas tem comprimento de 4.751mm (9mm a menos que o exigido no edital), e não se enquadra na largura, que é de 1.820mm (26mm a menos que o exigido pelo TJ). O preço dele é superior ao do Audi (R$ 422 mil).
- O BMW 320i M 2.0, de tamanho similar ao Audi, tem potência inferior à exigida no edital (184 cavalos), mas é flex e não híbrido. O comprimento é inferior ao exigido (4.709mm) e a largura, idem (tem 1.827mm). A distância entre eixos está dentro da exigência (é de 2.851mm). O preço (R$ 332 mil) é inferior ao do Audi.
- O Honda Accord híbrido é provavelmente o automóvel com características que mais se aproximam daquelas do Audi vencedor da licitação. Tem potência dentro do exigido (207 cavalos), comprimento (4.970mm), largura (1.862mm) e distância entre eixos (2.830mm) compatíveis com a proposta do edital. O preço é R$ 315 mil, inferior ao do Audi. Acontece que esse modelo ainda está sendo lançado, não chegou ao mercado em escala industrial e, talvez por isso, não participou da licitação.
GZH consultou dois experts em licitações: o professor de graduação e pós-graduação em Análise Econômica do Direito na Fundação Getulio Vargas, doutor em Teoria do Direito com MBA em PPP e Concessões pela London School of Economics, Thiago Araújo, e o professor adjunto de Direito Administrativo da Universidade Federal de Santa Maria e doutor em Direito Público pela Unisinos, Yuri Schneider.
Mesmo sem entrar no mérito específico da compra de carros do TJRS (porque não conhecem detalhes), o dois estranham a quantia de cláusulas detalhadas colocadas no edital e que acabaram caindo como uma luva para a escolha do Audi A4. Eles ressaltam que a legislação sobre licitações permite especificidades, desde que não restrinjam ou diminuam desproporcionalmente a competitividade dos participantes do certame.
— No artigo 3 da Lei de Pregão (Lei 10.520/02), por exemplo, são vedadas especificações que, "por excessivas, irrelevantes ou desnecessárias, limitem a competição". É possível verificar que vários concorrentes em potencial não estariam aptos por alguns detalhes muito específicos do edital. O certame não pode indicar um objeto genérico demais, nem específico demais. Talvez fossem razoáveis as exigências de segurança, desempenho e espaço, mas é preciso verificar também se o custo do carro está compatível com o interesse público — explica Araújo, que também é procurador do Estado no Rio.
Schneider faz uma ressalva: ele destaca que a potência é necessária num veículo com juízes, já que são visados pelo crime organizado, "e podem ter de empreender uma fuga em alta velocidade". Mas ele salienta que a potência não precisaria ser tão especificada (203 cavalos).
O professor lembra que duas leis que regulam licitações, uma antiga (8666/93, ainda em vigor) e uma nova (14.133/21), vedam à administração pública criar cláusulas que restringem o caráter competitivo do certame. Há, inclusive, decisões de Tribunais Superiores e de Contas que estabelecem: a excessiva especificação de um objeto pode direcionar a compra de determinado material para determinada pessoa.
O Tribunal de Justiça disse que não vai se manifestar sobre a opinião dos especialistas. Ao longo da semana, o TJ explicou que a potência exigida é uma questão de segurança e o tamanho dos carros deve comportar equipe completa, inclusive militares que acompanham os desembargadores. Já o caráter híbrido do motor é por serem menos poluentes, uma adequação às modernas práticas ambientais.