Conteúdo verificado: Publicação no TikTok traz uma montagem com dois vídeos. O primeiro apresenta trecho de uma entrevista concedida pelo presidente Jair Bolsonaro falando sobre previsão de obras na BR-319 com a legenda “assista até o final”. O segundo apresenta imagens de crateras na mesma rodovia, com uma narração e o texto “trabalho malfeito típico deste desgoverno”.
O governo de Jair Bolsonaro (sem partido) não fez obras estruturais no trecho da Rodovia BR-319 onde crateras se abriram, no Amazonas. Dessa forma, é enganosa a postagem no TikTok que associa o problema a supostas obras malfeitas durante a atual gestão.
A rodovia, construída na década de 1970, foi destruída pela ação do tempo e passou a ser revitalizada ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), tendo obras realizadas também nos governos do PT.
Por meio do Google Street View, foram localizadas imagens de 2012, à altura de Careiro Castanho, no Amazonas, que comprovam ser anterior à gestão Bolsonaro a repavimentação do trecho. Atualmente, apenas as duas extremidades da rodovia estão pavimentadas, incluindo o segmento onde as crateras apareceram.
O Observatório BR-319 — entidade apartidária que tem como objetivo monitorar atividades socioambientais e informar a sociedade civil sobre a rodovia — informou ao Comprova que a pavimentação não ocorreu entre os anos de 2018 e 2021, ou seja, durante a gestão de Bolsonaro, tendo sido feitos apenas reparos técnicos neste período.
Em buscas no site do Departamento Nacional de Infraestrutura e Trânsito (DNIT), não foi possível localizar nenhuma informação sobre serviços realizados pelo governo Bolsonaro, sendo identificadas apenas licitações para que ações sejam iniciadas.
A BR-319 está dividida em quatro segmentos: A, B, C e Trecho do Meio. As crateras foram abertas no A, que não recebeu obras estruturais na atual gestão federal. Atualmente, são realizadas audiências públicas que debatem o licenciamento ambiental da BR relacionado à reconstrução e pavimentação do Trecho do Meio.
O diretor-geral do DNIT, General Santos Filho, afirmou recentemente que o departamento já licitou a reconstrução do lote C e que, passado o período de chuvas, deve ser iniciada a terraplenagem. Com relação ao projeto de reconstrução do Trecho do Meio, disse que a expectativa é que a obra comece em 2022.
Procurado, o autor do vídeo alegou ter feito a publicação com a intenção de formar opinião contra o atual governo, que considera incompetente. Sobre a obra não ter sido feita pela atual gestão, ele sustenta que Bolsonaro afirma ter iniciado o primeiro trecho licitado.
O presidente, na verdade, afirma apenas que o “primeiro trecho” foi licitado e se refere ao segmento C e não ao que aparece no vídeo das crateras.
O Comprova etiquetou a postagem como enganosa porque o conteúdo foi retirado do contexto original e usado em outro, de modo que seu significado sofreu alterações.
Como verificamos?
O Comprova fez o download da montagem e utilizou a ferramenta InVid para dividi-la em frames. A partir deles, realizou uma busca reversa para encontrar outras imagens do local publicadas na internet e encontrou a entrevista concedida por Bolsonaro ao apresentador de TV Sikêra Jr.
Por meio do logotipo do site A Crítica de Humaitá, que aparece no canto direito do vídeo das crateras, foi identificada a postagem original das imagens e conversamos com os responsáveis pelo site.
A reportagem encontrou uma verificação da Agência Lupa de março de 2019, informando ser falso que a gestão de Bolsonaro concluiu o asfaltamento da rodovia entre Manaus e Porto Velho.
Também entrou em contato com o DNIT para perguntar sobre as obras na região e o que motivou a abertura de crateras nas proporções mostradas no vídeo.
Foi pesquisado o histórico da rodovia, além de documentos oficiais e diversas reportagens sobre o atual processo de reconstrução. Localizamos, ainda, o trecho em questão com o Street View, do Google Maps.
Por meio de buscas nas redes sociais, localizamos o Facebook do autor da postagem e entramos em contato via e-mail e WhatsApp disponibilizados na página.
Verificação
Fortes chuvas causaram crateras no km 118
O vídeo que mostra as crateras abertas na rodovia BR-319 é verdadeiro e foi postado originalmente pelo site A Crítica de Humaitá, de uma cidade do interior do Amazonas. Conforme a publicação, as imagens gravadas próximo a Manaus foram enviadas por um leitor à redação e o trecho está localizado entre o município de Careiro, conhecido como Careiro Castanho, e Careiro da Várzea, ambos no Amazonas.
No dia 28 de setembro, o Comprova entrou em contato com os responsáveis via número de WhatsApp fornecido pelo site. Eles confirmaram que o vídeo foi enviado à redação e informaram que o tráfego de veículos já havia sido restabelecido no local.
O caso também foi noticiado por outros veículos. Há uma reportagem publicada pelo G1 Amazonas em 24 de setembro de 2021 informando que as rachaduras surgiram a partir de um bueiro, durante um período de fortes chuvas, no km 118, perto de Careiro Castanho. O desabamento da pista, segundo a publicação, foi provocado pela correnteza da água, que gerou uma erosão.
No mesmo dia, o DNIT se posicionou sobre o assunto no Twitter, afirmando ter mobilizado equipes e equipamentos para realizar serviços de manutenção emergencial no local: “O trecho foi parcialmente rompido devido a processo de comprometimento do corpo estradal, causado por processo erosivo, em decorrência da cheia histórica que atingiu a região”, informou o órgão.
A BR-319
A rodovia foi construída entre as décadas de 1960 e 1970, como fruto do projeto nacional de integração promovido pela ditadura militar. Inaugurada em 1976, possui extensão total de 877,4 quilômetros e é a única via terrestre que liga as capitais dos estados do Amazonas e de Roraima.
Segundo dossiê publicado pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o projeto de repavimentação e recuperação da BR-319 estava previsto nos programas Brasil em Ação 1996-1999 e Avança Brasil 2000-2003, nos dois mandatos do governo Fernando Henrique Cardoso.
Em 2001, 158 km (cerca de 18% da rodovia) foram efetivamente repavimentados: 100 km no trecho ao norte da rodovia, entre Manaus-Careiro Castanho, onde foi gravado o vídeo que apresenta as crateras, e 58 km próximos a Humaitá, após a confluência com a Transamazônica (BR-230).
Em 2005, já no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o governo federal novamente iniciou um projeto de reconstrução dessa rodovia e, em 2007, a obra foi incluída no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). O Exército Brasileiro começou a asfaltar, em 2008, 190 km próximos a Humaitá, e outros 215 km que levam a via até Manaus.
Os resultados da 23ª edição da Pesquisa CNT de Rodovias mostram que, em 2019, a BR-319 tinha 323 quilômetros de pista em condições regulares, 39 km em estado ruim e outros 84 km em péssimo estado. Nenhum trecho da via federal consta em ótima condição, segundo o levantamento.
Atualmente, apenas dois trechos estão pavimentados: os primeiros 198 km e os 164 km finais. Basicamente, é trafegável apenas nos dois extremos, entre Manaus-Careiro Castanho e Porto Velho-Humaitá.
O site Observatório BR-319 mantém uma linha do tempo com detalhes da rodovia desde a abertura até o ano de 2020.
Fernanda Meirelles, secretária-executiva do Observatório, informou que a pavimentação dos trechos não ocorreu entre 2018 e 2021, período da gestão de Bolsonaro. “Em novos trechos a gente não observou, nem a ampliação de capacidade, nem nada assim. Realmente, o que nós vimos foi [a realização de] reparos nos buracos”, disse.
Meirelles reforçou que a BR foi construída sem exigência do licenciamento ambiental, no final da década de 1970, e que apenas em 2005, o assunto voltou a ser pautado pelo Executivo federal, no governo Lula.
“Ainda em 2005 o Ibama, por meio de um parecer técnico, dividiu a estrada em quatro trechos, e definiu que o trecho que precisava de licenciamento ambiental era somente o trecho do meio, que era uma porção com bastante floresta preservada e se arrasta esse processo”, disse. “Isso tudo sempre bem antes da gestão Bolsonaro. O trecho C já estaria apto a ser repavimentado há muito tempo e não foi feito por questões de prioridade do governo”.
O que diz o Dnit
A reportagem questionou o DNIT por e-mail sobre o que ocorreu na BR-319 para que surgissem as rachaduras na altura do quilômetro 118, perto de Careiro Castanho. Também solicitou informações sobre quais foram as últimas obras feitas na região.
O DNIT respondeu apenas ao primeiro questionamento, afirmando que “trabalhou de forma imediata e intensa” para solucionar o rompimento parcial do trecho, causado por um processo erosivo em decorrência da cheia histórica que atingiu o Amazonas.
“Em menos de 12h, as equipes da autarquia restabeleceram o tráfego de veículos no segmento e, neste domingo (3 de outubro de 2021), finalizaram os serviços – com a sinalização de todo o trecho. Neste período, foram realizados trabalhos de reforço do corpo de aterro com pedra rachão e fortalecimento da camada de sub-base”, disse o órgão.
Em buscas feitas pela reportagem no site do DNIT sobre obras na BR-319, não foi possível localizar nenhuma informação sobre serviços realizados pela atual gestão federal na rodovia. As únicas informações são de licitações para que as ações sejam iniciadas.
Já no Google Street View, localizamos imagens da rodovia em 2012, na altura de Carreiro Castanho, no Amazonas, que comprovam que a repavimentação foi realizada antes da gestão Bolsonaro.
Governo Bolsonaro e as questões socioambientais
Desde o primeiro ano de mandato, Bolsonaro promete que irá recuperar a BR-319, mas questões relacionadas aos impactos sociais e ambientais da obra têm freado o interesse do governo. A rodovia corta uma grande área de preservação da floresta amazônica.
Em setembro deste ano, o DNIT lançou a Cartilha do Construtor para orientar o corpo técnico de construtoras atuantes na rodovia sobre questões ambientais durante todas as etapas do serviço visando o respeito à legislação ambiental.
O trecho onde apareceram as crateras pertence ao Segmento A, que liga Manaus ao Rio Tupana.
O documento destaca que a BR-319 possui, atualmente, licença de instalação emitida em 2016, especificamente para o Trecho do Meio, localizado entre o km 250 e o km 655,70. Além disso, há um Termo de Acordo e Compromisso (TAC) emitido pelo Ibama em 2007 que compreende os segmentos A, B e C e tem como principal objetivo a adequação do licenciamento ambiental nestes trechos.
O órgão mantém um portal temático sobre a rodovia, atualizado desde 2019, que informa estarem sendo elaborados projetos de engenharia para atualização dos antigos projetos relacionados ao Trecho do Meio.
Conforme a publicação, o processo está na fase final de levantamento de dados de campo e início da elaboração do Projeto Básico de Engenharia. O trecho foi dividido em dois lotes de projetos e em cinco segmentos de obra. No quadro abaixo, percebe-se que nenhum deles afeta o quilômetro onde as crateras foram abertas.
Em junho deste ano, o diretor-geral do DNIT, general Santos Filho, participou de uma audiência pública realizada pela Câmara dos Deputados para tratar sobre a rodovia.
Na ocasião, informou que o DNIT já licitou a reconstrução do lote C e que, passado o período de chuvas, deve ser iniciada a terraplenagem. Com relação ao projeto de reconstrução do Trecho do Meio, diz que a expectativa é que a obra de um lote comece em 2022.
No mesmo mês, o órgão protocolou complementações em atendimento ao parecer emitido pelo Ibama com a análise técnica do Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA). O documento está novamente em análise pelo órgão licenciador, visando a obtenção da licença prévia.
Em julho, o departamento anunciou ter assinado contrato para a execução dos estudos ambientais necessários para obtenção da Licença de Instalação (LI) e da Autorização de Supressão de Vegetação (ASV) requeridas no processo de licenciamento ambiental para reconstrução e pavimentação do Trecho do Meio.
Atualmente, são realizadas audiências públicas que debatem o licenciamento ambiental da BR-319, com apresentação do EIA/RIMA relacionado à reconstrução e pavimentação do Trecho do Meio. Elas chegaram a ser suspensas pela Justiça Federal, no final de setembro, a pedido do Ministério Público Federal. A procuradoria alegou que estudos de impacto ambiental estão incompletos, além da falta de acesso a informações pelas populações impactadas pela obra e dos riscos à saúde por conta de aglomerações durante a pandemia de covid-19. Horas depois, contudo, o Tribunal Regional da 1ª Região (TRF-1) suspendeu a liminar.
Bolsonaro refez promessa em entrevista a Sikêra Jr.
A entrevista de Jair Bolsonaro foi transmitida ao vivo pelo YouTube no canal da emissora amazonense TV A Crítica, onde Sikêra Jr. apresenta o programa Alerta Amazonas. O presidente foi entrevistado no dia 23 de abril de 2021.
No trecho utilizado no TikTok, o apresentador fala sobre a BR-319 e as promessas de pavimentação que atravessaram décadas, questionando ao presidente se a rodovia “sai”.
Bolsonaro responde que o primeiro trecho começou a ser licitado, que o ministro da Infraestrutura, Tarcisio Freitas, está “empenhado” na tarefa e que a bancada parlamentar local está colaborando com emendas garantindo recursos: “vai sair”, afirma.
A entrevista completa tem mais de 42 minutos e o assunto relacionado à rodovia foi abordado logo no início, a partir de três minutos e quarenta segundos de conversa.
No vídeo original, o presidente afirma, além do que consta no trecho do TikTok, não poder detalhar quando a obra estará pronta, alegando haver períodos chuvosos, quando não é possível executar serviços, mas declara que “já saiu do papel”.
Ele também cita superficialmente as questões socioambientais que travam o processo, culpando ambientalistas que considera serem radicais e afirmando que o governo está “vencendo” as etapas.
O que diz o autor do vídeo
Ao ser questionado pelo Comprova, via WhatsApp, sobre a origem do vídeo e a intenção de compartilhar o conteúdo, o autor afirmou que a montagem feita por ele usa trechos de uma entrevista retirada do canal do Sikêra Jr. Já o segundo trecho foi extraído de “uma outra conta do TikTok”. Ele pediu para ser avisado caso as informações do vídeo sejam falsas para excluir o vídeo da rede social.
“A minha intenção, quando faço publicações, é formar opinião contra este que eu considero um governo completamente incompetente, incapaz de articular uma administração sustentável”, afirmou à reportagem.
Morador do Rio Grande do Norte, o autor da postagem não viu pessoalmente os danos causados à BR-319, mas afirmou que a veracidade se dá porque a notícia sobre o estado da via está “em vários veículos de comunicação”.
A reportagem também questionou se ele sabia que a obra da BR-319 não foi realizada pelo presidente Jair Bolsonaro, ao que respondeu: “a obra não foi feita, mas há vídeos do próprio governo onde ele [Bolsonaro] afirma ter iniciado. No mesmo vídeo, o primeiro da montagem, o Bolsonaro diz que já iniciou o primeiro trecho licitado.”
Efeitos da publicação
Ao afirmar que o governo Bolsonaro é o responsável pela obra que ruiu na BR-319, a publicação conduz os internautas a uma falsa percepção sobre os fatos.
Nos comentários do vídeo é possível notar o impacto gerado. “Trabalho feito às pressas, pensando na reeleição”, comentou um seguidor, acreditando na informação enganosa sobre a obra na BR ter sido realizada pela atual gestão.
Com ironia, outro internauta questionou se a via foi “feita com leite condensado”, em referência ao escândalo federal envolvendo as despesas alimentícias do poder Executivo em 2020, que gastou R$ 15 milhões na aquisição do item culinário.
Por que investigamos?
Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos sobre pandemia, políticas públicas do governo federal e eleições. A publicação feita no TikTok alcançou mais de 5,4 mil interações até o dia 7 de outubro.
Conteúdos que tentam criar uma relação entre obras de outras gestões, que estejam inacabadas ou com problemas estruturais, são perigosos porque geram desinformação em massa nas redes sociais, induzindo outras pessoas ao erro.
Mesmo diante da queda da popularidade do presidente por conta das ações e omissões do governo no combate da pandemia, o conteúdo com informações enganosas impacta a avaliação sobre Bolsonaro, provável candidato à reeleição.
O Comprova já verificou diversos outros conteúdos relacionados a obras federais, como postagens que atribuem a Bolsonaro obra realizada em 2015 pelo governo de São Paulo e vídeos que omitem ações de governos anteriores para exaltar obras de Bolsonaro na Transamazônica e no Mato Grosso.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; ou ainda aquele que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Este conteúdo foi investigado por UOL, Correio de Carajás e Correio Braziliense e verificado por GZH, Estadão, Folha, Poder360, Piauí, A Gazeta e SBT.