A cardiologista Ludhmila Hajjar rejeitou ser a quarta chefe do Ministério da Saúde em plena pandemia. Oficialmente, a médica alegou falta de "convergência técnica" com o presidente Jair Bolsonaro em temas como uso de cloroquina e adoção de medidas mais restritivas de circulação para reduzir a transmissão do vírus, mas depois revelou que foi ameaçada de morte por pessoas contrárias à sua nomeação.
Em entrevista à Globonews, a médica contou que foi alvo de ataques durante o período em que seu nome foi cotado para assumir o comando do Ministério da Saúde. "Nestas 24 horas, houve uma série de ataques a mim. (...) Estou num hotel em Brasília, e houve três tentativas de entrar no hotel. Pessoas que diziam que estavam com o número do quarto e que eu estava esperando-os. Diziam que eram pessoas que faziam parte da minha equipe médica. Se não fossem os seguranças do hotel, não sei o que seria", afirmou.
Ludhila havia se reunido com Bolsonaro na tarde deste domingo, 14, e comunicou a ele sua decisão nesta segunda, 15, em novo encontro no Palácio do Planalto. Os ataques ocorreram, segundo ela, entre essas duas reuniões.
"Realmente foi assustador. Está sendo, porque eles não terminaram. Mas eu tenho muita coragem, e pelo Brasil eu estava disposta a passar por isso. Mas isso me assustou. Criaram perfis falsos meus em Twitter, perfis falsos em Instagram. Divulgaram meu celular em redes sociais. Imagina, eu sou uma médica, eu preciso do meu telefone para atender meus doentes. Eu recebo mais de 300 chamadas. Ameaças de morte. Houve uma tentativa de entrar no meu hotel no qual eu estou em Brasília. Houve ameaças à minha família. Então, tudo o que você imaginar de pessoas que eu só posso considerar que estejam lutando para o Brasil dar errado eu sofri" , disse.
Cardiologista respeitada na comunidade médica e também na classe política, Ludhmila afirmou que o presidente Bolsonaro, ao saber da campanha de ódio feita contra ela, disse apenas que "faz parte". E que, diante da falta de "convergência técnica" entre ela e o governo, afirmou que não pôde aceitar o convite.
Mais cedo, em entrevista à CNN, Ludhmila já havia dito que "assuntos como cloroquina, como se acredito em lockdown, são secundários, não deveriam estar sendo discutidos. Lockdown é demonstrado cientificamente que salva vidas", disse. A cardiologista defendeu "centralização" de ações no ministério para auxiliar prefeitos e governadores em decisões duras, como decretar um lockdown. Ela disse reconhecer que há impacto social e econômico por este tipo de medida, mas que "não há outro jeito" em alguns casos.
Apoios
Como mostrou o Estadão mais cedo, Ludhmila já havia comunicado a autoridades que defendiam seu nome que não aceitaria o posto hoje ocupado pelo general Eduardo Pazuello. A cardiologista tinha o apoio, por exemplo, do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal de Contas da União (TCU). Auxiliares do presidente viram a eventual nomeação da médica como uma chance de mudar a narrativa sobre a pandemia. O governo está sob pressão pela alta de mortes, explosão de internações e atrasos na campanha de vacinação.
Mas sua ligação com a classe política virou munição para os ataques. Um vídeo do ano passado em que ela conversa com a ex-presidente Dilma Rousseff sobre saúde foi resgatado por apoiadores de Bolsonaro e postado nas redes sociais para tentar relacionar a médica aos governos petistas e assim descartá-la."Postaram coisas a respeito da esquerda. Cuidei de vários (políticos) da esquerda e continuarei cuidando porque não tenho medo. E, é por isso, que estou aqui. Me agrediram, agrediram minha vida pessoal e minha família sofreu ataques. Tive de sair com muita preocupação do hotel que estava, porque sofri ameaças de morte", relatou ainda à CNN.
Na reunião, segundo estes interlocutores, ficou claro que Bolsonaro e Ludhmila têm visões opostas sobre a resposta à covid-19. O presidente é um defensor de medicamentos sem eficácia, como a cloroquina, tratamento que a médica critica abertamente. Para aceitar o cargo, ela também tinha a intenção de montar uma equipe própria na pasta, mas o presidente mantém controle sobre as ações da saúde na pandemia.
As conversas sobre a substituição de Pazuello ganharam força no fim de semana. Ainda são cotados para o cargo o deputado Dr. Luizinho (PP-RJ), aliado de Lira, e o médico Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). A leitura de uma autoridade que acompanha as discussões é que ambos devem receber apoio do Congresso e de auxiliares do presidente, mas podem parar no filtro de Bolsonaro ao cargo, pois também têm opiniões distintas às do mandatário sobre o combate à pandemia.
A saída de Pazuello da Saúde foi um dos pontos tratados em reunião de Bolsonaro com o próprio general, além dos ministros Braga Neto, da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Fernando Azevedo, da Defesa, no sábado, 13.
Na entrevista em que comunicou a recusa, Ludhmila fez críticas à condução do governo federal no enfrentamento da pandemia. Para ela, houve um erro ao subestimar a doença e será precisa de uma "virada de entendimento". A cardiologista disse ainda que faltou um "discurso único" e que o País paga um preço pelo atraso na compra das vacinas.
Questionada sobre qual seria o meu perfil para assumir a vaga de Pazuello, a cardiologista disse que escolheria um médico para o ministério, mesmo que fosse um político. "Alguém que compreenda um pouco de saúde pública, tenha vivência na área e que ao mesmo tempo seja uma pessoa hábil para unir o Brasil. Sobre ser político ou não, eu não vejo nenhum problema, mas o ideal é que fosse médico", disse à CNN.
A cardiologista afirma que percebeu Bolsonaro "preocupado" com o País e que o presidente entende a "necessidade de mudança de salvar as pessoas". "Mas é claro que ele tem a visão e o posicionamento dele. Isso precisa ser respeitado", declarou.
Investigações
Para além da pressão do Congresso, a inviabilidade de Pazuello no cargo passa, ainda, pelas investigações do Supremo Tribunal Federal, que apura seus atos e eventuais responsabilidades pela crise generalizada no sistema de saúde. Ao deixar de ser ministro, Pazuello perde, inclusive, o foro privilegiado e o caso deverá ser encaminhado para a primeira instância da Justiça Federal.
Oficialmente, o governo deve alegar que Pazuello está cansado e que pediu para ser substituído. Em nota no fim da tarde de ontem, porém, o general disse que segue ministro e que não está "doente": "Não estou doente, não entreguei o meu cargo e o presidente não o pediu, mas o entregarei assim que o presidente solicitar. Sigo como ministro da Saúde no combate ao coronavírus e salvando mais vidas".