SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A cúpula militar brasileira acompanha com preocupação o isolamento de Jair Bolsonaro na crise da pandemia do coronavírus.
Teme que o presidente, visto como instável e num momento de particular agressividade reativa, fomente radicalismos que acabem por envolver as Forças Armadas.
Chamou a atenção de oficiais-generais dos três braços militares o presidente ter falado de anormalidade democrática em decorrência da crise.
Em entrevista na frente do Palácio da Alvorada na quarta (25), Bolsonaro defendeu sua criticada posição de evitar quarentenas para combater o contágio do vírus.
E vaticinou, sem ser perguntado: "Caso contrário, o que aconteceu no Chile vai ser fichinha perto do que pode acontecer no Brasil. Se é que o Brasil não possa ainda sair da normalidade democrática que vocês [imprensa] tanto defendem".
Depois, alegou que tais problemas viriam da esquerda, e não por sua iniciativa.
Não é a primeira vez que o presidente saca o espantalho chileno, os protestos que sacodem o país andino desde o ano passado.
Em outubro, pressionado no episódio em que postou vídeo chamando o Supremo de hiena, disse que convocaria as Forças Armadas caso houvesse distúrbios semelhantes aos do Chile, e que a esquerda latina tramava isso.
Há um instrumento legal para isso, o artigo 142 da Constituição, segundo o qual qualquer um dos Poderes pode convocar os fardados para garantir a ordem pública em caso de crise extrema.
Se hoje não há esquerda na rua a promover desordem, de que baderna falou Bolsonaro?
A única resposta no radar é uma crise social aguda decorrente da pandemia.
Na reunião virtual de governadores ocorrida na quarta-feira, chefes de estados mais frágeis relataram riscos de saques e distúrbios, além das questões sanitárias em si.
Mesmo na mais poderosa unidade da Federação, São Paulo, policiais civis estão reforçando patrulhas de PMs após três saques a mercados.
Eventuais emergências em locais como Tocantins, onde rios da bacia que dá nome ao estado ameaçam desabrigar milhares, também compõem um quadro complexo.
Os militares sabem como funciona. Primeiro vem o problema, depois a declaração de incapacidade do estado, aí entra a GLO (operação de Garantia de Lei e da Ordem). Tem sido uma rotina: foram 141 de 1992 para cá.
O Ministério da Defesa montou centros de monitoramento e resposta à crise que a chegada do novo vírus trouxe.
O comandante do Exército, general Edson Pujol, ressaltou em mensagem que o país poderia contar com o "braço forte" tanto quanto com a "mão amiga", o mote da Força.
O agravante é a politização da questão. Desde o começo, o presidente foi na contramão mundial e minimizou o vírus.
Depois, passou a vender a narrativa segundo a qual a economia precisa ser preservada e medidas restritivas contra o patógeno seriam tão perigosas quanto ele.
Com a falta de apoio generalizada entre governadores, Congresso e comunidade médica ao seu receituário, restou a Bolsonaro pregar à sua base de apoio mais radical enquanto é pressionado a agir.
A resultante do embate, temem os militares, pode ser o agravamento desnecessário dos problemas econômicos e sanitários na ponta.
Aqui entra um componente delicado: se a cúpula da ativa tenta riscar uma linha separando sua ação da de Bolsonaro, como a mensagem sóbria de Pujol indicou, ela sabe que está no coração do governo na forma de ministros e que o presidente apela aos estratos médios e baixos das Forças e das PMs.
Por isso, segue sob observação o dia 31 de março, data do golpe de 1964 celebrado por Bolsonaro.
Postagem anônima replicada por Bolsonaro sugeriu atos nas frentes dos quartéis contra os Poderes, semelhantes aos apoiados ao vivo pelo presidente no dia 15.
Bolsonaro tergiversou, mas a questão inquieta comandantes ouvidos pela reportagem. Perguntam: e se o protesto ocorrer e adicionar à lista de alvos os governadores ora em embate direto com o Planalto?
Militares têm recebido relatos de insatisfação de tropas de policiais com as condições de trabalho durante a epidemia, e a memória da incitação ao motim da PM-CE por membros do governo está fresca.
Para usar o jargão de um general, há o temor de que as Forças Armadas acabem sendo bucha de canhão.
Os nervos estão à flor da pele. A publicação da lista de promoções e trocas de cargos de generais no Diário Oficial, um ato corriqueiro decidido há mais de um mês, virou a "preparação do golpe de Bolsonaro" no WhatsApp.
O papel da ala militar no governo também é especulado.
A troika de generais (o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, o secretário de Governo, Luiz Eduardo Ramos, e o chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto) tem buscado sem sucesso moderar o chefe, mas também isso não significa que ela esteja tramando contra ele.
O vice, general Hamilton Mourão, fez seu usual morde-e-assopra, ao dizer que o caudaloso discurso de Bolsonaro em rede nacional foi apenas mal expressado, mas defendendo o isolamento social.
Isolado pelos filhos de Bolsonaro, Mourão nunca foi uma unanimidade entre seus pares, mas tem sido lembrado cada vez pelo nome com que vinha sendo chamado por diversos militares: a alternativa constitucional.
Na eventualidade de o presidente renunciar ou sofrer um hoje improvável impeachment, a ala militar iria enfrentar outro problema: seria acusada de ter fomentado um golpe palaciano caso Bolsonaro leve o conflito ao paroxismo.