Além de aceitar ser ministro do governo Dilma para tentar ganhar foro privilegiado — e escapar de uma iminente prisão — o ex-presidente Luiz Inácio da Silva também fez acenos ao então vice-presidente Michel Temer (MDB) para tentar escapar das ações da Lava-Jato e reorganizar a base política do governo Dilma durante o processo de impeachment. É o que mostra, em nova parceria, reportagem do jornal Folha de S. Paulo e o site The Intercept Brasil publicada neste domingo (8).
A reportagem aborda fatos ocorridos em março de 2016, quando Lula estava prestes a ser chamado para prestar explicações à Lava-Jato e a Polícia Federal já o apontava como chefe de um esquema de corrupção entre políticos e empreiteiros. Lula aceitou ser ministro de Dilma — o que daria a ele foro privilegiado e impediria que tivesse a prisão decretada por um juiz de primeira instância, como o paranaense Sergio Moro (o condutor da Lava-Jato). A nomeação do ex-presidente, no entanto, acabou abortada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e Lula não obteve o foro especial, o que se tornaria decisivo para sua prisão, dois anos depois.
Na época da nomeação, o diálogo em que Dilma informa Lula sobre a possibilidade de se tornar ministro acabou gravado pela PF e divulgado pelo juiz Moro, como forma de demonstrar que políticos se protegem contra os atos da Justiça. A Folha de S. Paulo e o The Intercept, no entanto, tiveram acesso a relatórios da PF que mostram que, além da conversa entre a presidente e seu antecessor, outros 22 telefonemas de Lula foram interceptados pelos policiais. Essas ligações revelam que o próprio Lula tinha dúvidas sobre aceitar ou não o cargo ministerial.
Lula teve intensa atividade política naqueles dias. A PF, segundo a Folha, escutou duas conversas entre Lula e o então vice-presidente Michel Temer (MDB). Na primeira, eles marcaram uma reunião para o dia seguinte, e Lula disse a Temer que a rejeição enfrentada pelos políticos numa recente manifestação pró-impeachment mostrava que o avanço da Lava-Jato criara riscos para todos os partidos, não só o PT. Na segunda ligação, após discutir a situação de um aliado do vice-presidente no governo, o petista prometeu ser um parceiro e disse que eles deveriam atuar como "irmãos de fé".
Conforme as anotações dos agentes da PF, Temer respondeu a Lula dizendo que "sempre teve bom relacionamento" com ele. Os agentes passaram ao MP e a Moro tudo que Lula fez nas 24 horas anteriores ao fim das escutas autorizadas, incluindo a conversa com Temer. Mesmo assim, essa parte não foi divulgada à imprensa — apenas o diálogo com Dilma.
A reportagem mostra também que integrantes do MPF opinaram que os diálogos deveriam ser divulgados à mídia e celebraram a divulgação. Eis a transcrição de uma conversa num chat entre procuradores no aplicativo Telegram:
16.mar.2016
Carlos Fernando dos Santos Lima
18:40:09 Tá na Globo News
Deltan Dallagnol
18:52:42 Ótimo dia rs
Orlando Martello
18:53:19 O q está na Globo News? Os áudios?
Athayde Ribeiro da Costa
18:53:37 Tudo
Jerusa Viecili
18:53:40 Isso
Orlando Martello
18:53:59 Meu deus!!! Rs
Athayde
18:54:11 O mundo caiu
Deltan
18:59:54 Caros vamos descer a lenha até terça
A Folha de S. Paulo e o site The Intercept Brasil consideram que o juiz liberou para a mídia apenas o que era escandaloso nas conversas, sem demonstrar toda a amplitude da articulação política de Lula. O telefonema de Dilma foi o único que a PF anexou aos autos da investigação sobre Lula nesse dia.
O processo contra Lula prosseguiu, mas os diálogos tiveram vida legal curta. O ministro Teori Zavascki, do STF, determinou que eles fossem extirpados da ação penal porque foram interceptados fora do prazo legal.
Em nota, a defesa de Lula afirma que a divulgação dos diálogos "auxilia a reconstrução da verdade histórica e expõe as grosseiras ilegalidades praticadas pelo ex-juiz Sergio Moro e pelos procuradores da Lava-Jato contra o ex-presidente Lula".
"A conversa mantida entre o advogado Cristiano Zanin Martins e o ex-Presidente Lula em 16/03/2016, gravada e ouvida ilicitamente pela Lava-Jato, reforça que o ex-presidente Lula sequer tinha o objetivo de aceitar o cargo de Ministro de Estado e muito menos o de impedir qualquer investigação da Lava-Jato."
Confira a nota na íntegra:
Reportagem publicada hoje (08/09) pela Folha de S. Paulo em parceria com o "The Intercept" ("Diálogos de Lula que a Lava Jato não expôs contrariam Moro") auxilia a reconstrução da verdade histórica e expõe as grosseiras ilegalidades praticadas pelo ex-juiz Sergio Moro e pelos procuradores da Lava-Jato contra o ex-presidente Lula, contra os seus advogados, e também contra o Supremo Tribunal Federal, pois, dentre outras coisas:
1 — mostra que o ex-juiz Sergio Moro, os procuradores e o delegado da Lava Jato de Curitiba selecionaram conversas telefônicas mantidas por Lula, escondendo dos autos e do Supremo Tribunal Federal aquelas que mostravam a verdade dos fatos, ou seja, aquelas que deixavam claro que o ex-presidente aceitou o cargo de Ministro de Estado para ajudar o governo e o país e não para qualquer outra finalidade ligada às investigações da Lava-Jato;
2 — mostra que os procuradores da Lava-Jato tinham plena consciência da ilegalidade que estavam praticando ao postularem pela divulgação das conversas telefônicas grampeadas, inclusive aquelas captadas após a decisão judicial que determinou o encerramento das interceptações, mas mesmo assim decidiram levar adiante essa iniciativa, juntamente com o ex-juiz Sergio Moro, para alcançar resultados políticos e estranhos ao processo;
3 — mostra que além do grampo ilegal instalado no principal ramal do nosso escritório por autorizaçã do ex-juiz Sergio Moro para acompanhar a estratégia de defesa de Lula, a Lava-Jato também ouvia as conversas telefônicas que mantivemos com o ex-presidente a partir de ligações por ele realizadas para outros telefones; vale dizer: a Lava-Jato grampeou deliberadamente conversas entre advogados e Lula por mais diversos meios e usou dessas conversas para reforçar o "lawfare" contra o ex-presidente;
4 — a conversa mantida entre o advogado Cristiano Zanin Martins e o ex-Presidente Lula em 16/03/2016, gravada e ouvida ilicitamente pela Lava-Jato, reforça que o ex-presidente Lula sequer tinha o objetivo de aceitar o cargo de Ministro de Estado e muito menos o de impedir qualquer investigação da Lava-Jato.
A adoção de práticas ilegais e incompatíveis com o devido processo legal e com o "fair trial" pelos membros da Lava-Jato contra Lula e contra nós, seus advogados, há muito tempo vem sendo demonstrada em diversos recursos e procedimentos jurídicos. Os membros da Lava-Jato sistematicamente esconderam provas de inocência e estruturaram condenações pré-estabelecidas e medidas invasivas contra Lula e seus familiares com base em delações e outros elementos sem qualquer valor probatório, afrontando as garantias fundamentais do ex-presidente, a legislação internacional incorporada pelo Brasil (Estatuto de Roma, art. 54, 1, "a"), além de diretrizes das Nações Unidas sobre a atuação de membros do Ministério Público ("Guidelines on the Role of Prossecutors", arts. 13 e 14).
Os habeas corpus que aguardam julgamento no Supremo Tribunal Federal tratando da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro e dos procuradores da Lava-Jato são de grande importância para restabelecer o Estado de Direito e para dar a Lula a possibilidade de um julgamento justo e por isso devem ser julgados com urgência - embora sejam irreparáveis os prejuízos causados por tais agentes públicos não apenas ao ex-presidente, mas à própria democracia do país.
Cristiano Zanin Martins/ Valeska T. Zanin Martins