Em 2002, a procuradora Raquel Dodge integrou uma força-tarefa que investigava o tráfico de diamantes na reserva indígena Roosevelt, área de 30 mil quilômetros quadrados em Rondônia capaz de produzir 1 milhão de quilates de pedras preciosas ao ano. A apuração policial demonstrava que os Cinta Larga, tribo que habita a região, vinha sendo aliciada por contrabandistas internacionais num esquema que tirava do país anualmente US$ 20 milhões em diamantes. Diante da pressão de um delegado da Polícia Federal pela prisão dos índios, Raquel interveio.
– Ela disse que prender os índios era fácil, mas que esperava uma ação mais qualificada da Polícia Federal para prender os verdadeiros beneficiários do tráfico – lembra o procurador Mário Lúcio Avelar, colega de Raquel na força-tarefa.
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Quinze anos depois, Raquel Elias Ferreira Dodge é a primeira mulher indicada à chefia do Ministério Público Federal (MPF). Segunda mais votada na lista tríplice da categoria, 34 votos a menos do que Nicolao Dino, ela foi designada ao cargo na quarta-feira, menos de 24 horas após concluída a votação dos procuradores. A pressa do Planalto em anunciá-la teve o objetivo de atingir o atual procurador-geral, Rodrigo Janot, a quem Dino é vinculado.
Nos planos do governo, uma tramitação rápida da indicação de Raquel no Senado ajuda a esvaziar os atos de Janot, que planeja apresentar novas denúncias contra o presidente antes do encerramento de seu mandato, em 17 de setembro. A procuradora cumpriu à risca a cartilha do governo. Mal seu nome foi anunciado no Palácio do Planalto, ela se reuniu com o presidente Michel Temer. Em seguida, foi ao encontro do presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE).
– O governo quer fazer um contraponto ao Janot, mas ele não vai dividir autoridade com ela. Vai atuar até o último dia – diz um interlocutor do procurador-geral.
Pesaram na indicação de Raquel o aval de políticos do PMDB e do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes. O fator preponderante, porém, foi a rejeição a Dino no governo. Além de proximidade com Janot, Dino foi autor da peça de acusação contra Temer no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Um dos seus maiores detratores foi o ex-presidente José Sarney, adversário político do irmão do procurador, o governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B), autor de uma devassa na gestão de Roseana Sarney no Estado.
Assim que o nome de Raquel foi confirmado pelo Planalto, começou a circular por Brasília um burburinho de que ela estaria incumbida de esvaziar a Lava-Jato. Os propagadores citavam um embate entre Raquel e Janot no Conselho Nacional do Ministério Público, onde ela foi autora de uma proposição que diminui o número de procuradores cedidos para forças-tarefas. A iniciativa atinge em cheio a Lava-Jato. Nos bastidores do MPF, são corriqueiros os relatos de antagonismo entre os dois.
– Há um conflito interno enorme. Chega a ser exagerada a antipatia entre eles – comenta um amigo de ambos.
Quem acompanhou a trajetória de Raquel em ações criminais duvida que ela possa enfraquecer a Lava-Jato. Há 30 anos no MPF e com mestrado na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, a procuradora já esteve na linha de frente de casos emblemáticos de crime e corrupção.
Nos anos 1990, foi uma das responsáveis pela primeira condenação do ex-deputado Hildebrando Pascoal, que pegou 100 anos de cadeia por assassinar suas vítimas com motosserra e dissolver os corpos em ácido. Ajudou a desarticular um esquadrão da morte no Espírito Santo, levando à prisão o então presidente da Assembleia, José Carlos Gratz. Também botou no xadrez o primeiro governador preso no exercício do cargo – José Roberto Arruda, do Distrito Federal.
No mensalão do PT, por pouco não assumiu a acusação diante do STF após o então procurador-geral, Roberto Gurgel, fraturar o braço às vésperas do julgamento. A possibilidade assustou os réus, diante da fama de ser mais rígida do que o próprio chefe.
– Nas vezes em que esteve no meu gabinete, defendeu com afinco as posições do MPF. É altamente técnica, muito qualificada e radical no combate à corrupção. Não tenho a menor dúvida de que vai repetir Janot, talvez até seja mais dura. Se o governo acha que com ela vai frear a Lava-Jato, deu mais um tiro no pé – diz o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp.
Na época da prisão de Arruda, Raquel era chamada de dama de ferro no MPF. Discreta e extremamente religiosa, a filha de um temido promotor de Justiça em Morrinhos (GO), onde nasceu, raramente altera o tom de voz tampouco teme pressões. Ao interrogar os assassinos chefiados por Hildebrando, impressionava os colegas pela contundência das perguntas. Mesmo ameaçada pelo facínora, jamais deixou o caso, no qual interrompia sessões para amamentar a filha caçula.
Agora no auge da carreira aos 55 anos, tem a missão de fazer a Lava-Jato avançar sobre os verdadeiros caciques do maior esquema de corrupção do planeta.