Terra dos conchavos por excelência, Brasília vive sob autoimposta lei do silêncio. Nos salões do poder, a eloquência de outrora cedeu lugar ao prudente resguardo. Poucos falam, mas muitos escutam. A enxurrada de gravações feitas pelo ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado disseminou atmosfera de desconfiança que torna qualquer interlocutor suspeito de delação. A política, em essência a arte da conversa, nunca esteve sob jugo tão impiedoso como o de um microfone escondido no bolso do paletó.
– O ambiente é muito ruim. Todo mundo está com o pé atrás, ninguém confia em ninguém – diz o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp.
Leia mais:
Em diálogos gravados, Jucá fala com ex-dirigente da Petrobras sobre pacto para deter avanço da Lava-Jato
Delação da Odebrecht é "metralhadora de ponto 100", diz Sarney em áudio
Em gravação, Renan fala em mudar lei da delação premiada, diz jornal
O medo do grampo sempre foi intenso em Brasília, uma herança da espionagem esgarçada durante a ditadura. No regime democrático, o que passou a assustaros políticos foi a proliferação de militares, policiais e homens da Agência Brasileira de Inteligência executando ações clandestinas.
O bicheiro Carlinhos Cachoeira, por exemplo, se valeu desse submundo de arapongas para construir uma teia de proteção aos seus negócios escusos. O que não se esperava é que políticos corruptos rompessem com a omertà, o código de honra das relações criminosas.
– Entre bandidos não há solidariedade, há negócios. Quem falou com o Sérgio Machado nos últimos três meses está apavorado – resume um dirigente partidário.
No Congresso, virou lugar comum repetir a célebre frase de Tancredo Neves, segundo a qual "telefone só serve para marcar encontro, e assim mesmo no lugar errado". Parlamentares têm preferido evitar reuniões em lugares públicos, mas, mesmo assim, há quem alerte que o então ministro do Planejamento Romero Jucá foi gravado em casa, às 7h de um sábado.
– A piada por aqui é que reunião agora só na sauna, com todo mundo nu – brinca o advogado Eduardo Ferrão, ele próprio citado nas gravações de Sérgio Machado como possível intermediário entre a cúpula do PMDB e o relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Teori Zavaski.
O clima de paranoia se reflete no cotidiano do governo. Arapongas percorrem ministérios oferecendo serviços, e o titular da Secretaria-Geral de Governo, ministro Geddel Vieira Lima, não permite a ninguém entrar com celular em sua sala. Por decisão do Planalto, uma varredura está sendo feita em toda a Esplanada, em busca de eventuais grampos instalados nos gabinetes.
Temor altera rotina no Planalto Central
Em operação semelhante, a Secretaria de Segurança do STF descobriu um aparelho de escuta ambiental debaixo da mesa do ministro Luís Roberto Barroso.
O equipamento estava sob o assoalho, desativado, em meio a uma amarração de fios. Relator da execução das penas do mensalão e do rito do impeachment, Barroso herdou o gabinete que antes pertencera a Joaquim Barbosa. Alegando sigilo da investigação, o tribunal não informou se em algum momento o aparelho foi acionado.
Mais elevada instância do Judiciário, o STF tem um rígido controle de acesso. Em determinados setores, a circulação dos servidores é restrita a quem possui crachás que abrem fechaduras eletrônicas. A sala da presidência, contudo, é uma das mais permeáveis à captação de conversas, devido à fragilidade das vidraças que compõem toda a fachada do edifício-sede.
– Como os vidros não são blindados nem temperados, da área externa é possível ouvir o que se diz na presidência – confirma um assessor da Corte.
Não se sabe quais medidas para remediar a situação irá tomar a próxima presidente do STF, Carmén Lúcia, cuja posse será em setembro. Atualmente, ela é uma das mais precavidas integrantes do tribunal. Na recepção do gabinete, há um guarda-volumes no qual os visitantes devem deixar os celulares. No Superior Tribunal de Justiça, os ministros também se resguardam. Há quem se negue a receber sozinho os interlocutores, chamando sempre um assessor para testemunhar as conversas.
– Para escapar, só agindo como o ex-senador Antonio Carlos Magalhães. Quando precisava ter conversa imprópria com alguém, ele chamava a pessoa para um banho de mar. Não havia gravador que resistisse à água pela cintura – lembra o maior especialista em fonética forense do país, Ricardo Molina (leia entrevista com o perito).
Juristas guardam divergências quanto à legalidade da prática
As gravações do ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado reacenderam debate sobre a legalidade dos grampos no país. Advogados e juristas também questionam se realmente algum crime foi flagrado nas conversas com próceres do PMDB.
Para o criminalista Luciano Feldens, qualquer pessoa pode suspeitar de uma operação da polícia ou criticar uma decisão judicial, sem que isso configure crime. Feldens compara o atual ambiente de condenação prévia a um diálogo entre duas pessoas ao julgamento do filósofo marxista Antonio Gramsci pelo regime facista do ditador Benito Mussolini, no qual o promotor público dizia que "é preciso impedir este cérebro de pensar por 20 anos".
– Impedir alguém de conversar sobre um processo é impedir a própria articulação da defesa. O que não se pode é cometer um crime – pontua Feldens.
Presidente da comissão que revisou o Código Penal brasileiro, o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp questiona até mesmo a legalidade dos grampos feitos por Machado. O jurista diz que o objetivo da gravação teria de ser proteger do ex-presidente da Transpetro e não incriminar seus interlocutores.
– Além disso, no processo penal, se não houver atos concretos, não há crime. E a obstrução de Justiça se faz com atos, não com palavras. Meras alegações não são prova – argumenta Dipp.
Um dos mais requisitados advogados de Brasília, Eduardo Ferrão tem opinião semelhante. Ele pondera que não há lei que impeça as pessoas de emitir juízo de discordância com uma investigação. Citado por José Sarney como alguém próximo do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Teori Zavaski, Ferrão diz que jamais tentaria interferir no trabalho do relator da Operação Lava-Jato:
– Seria canalha se me valesse da amizade com alguns ministros para oferecer facilidades aos clientes. Quando vou a Supremo, cumpro toda a liturgia da Corte e me limito a apresentar os memoriais dos casos em que atuo.
Divulgação de diálogos aguça cultura da fofoca
Ao mesmo tempo em que expõe corruptos, a divulgação sem freios de conversas privadas alimenta obsessão do público pela intimidade alheia. Segundo o diretor da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Robson Pereira, as escutas são sintoma perverso de nossa cultura e atualizam a fantasia de olhar pelo buraco da fechadura.
– A novidade é que acontece um convite, quase um imperativo de que se realize esta fantasia. A consequência é uma confusão entre público e privado e, mais importante, entre privacidade e intimidade – comenta Pereira.
Essa curiosidade insaciável fez viralizar na internet conversa da nora do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Renata da Silva, com um amigo, sobre a qual se disseminaram rumores de um eventual caso extraconjugal. A ligação foi interceptada pela Operação Lava-Jato e entregue à imprensa mesmo que não houvesse nenhum indício de ilegalidade na conversa.
– Ninguém resiste às fofocas da Corte. Parece que há um prazer com a degradação dos outros – comenta o psicanalista Mario Corso.
Na visão de Corso, nos últimos dois anos a política nacional tem protagonizado espetáculo terrível, que, por fim, acaba espelhando o comportamento da população, seja nos pequenos delitos éticos do dia a dia, seja pela demasiada atenção concedida à irrelevância:
– A gente perdeu o interesse pelo que realmente interessa. Não se discute uma saída para a crise. Só nos interessam os podres, as falhas morais dos outros. Se a gente deixa baldio o terreno das ideias, só vai germinar inço, bobagens.