Para muitos, a pequena janela no canto inferior da TV nos discursos oficiais com uma pessoa fazendo gestos não tem impacto maior. Porém, para quem não escuta, ter alguém para interpretar com sinais o que está sendo dito ajuda muito, além de acrescentar no processo de inclusão desta parcela da população. A importância do intérprete de Libras é tamanha que Caxias do Sul, desde 2015, tem o dia 30 de setembro dedicado no calendário para esses profissionais. Assim como a TV da Câmara de Vereadores, que leva o dia-a-dia da casa e da política para esse público.
O canal conta com duas profissionais intérpretes de Libras: Daiana Pereira, 28 anos e Cristiane Casara, 39 anos. Elas fazem parte de uma empresa terceirizada, a C&D Intérpretes de Libras, e prestam esse serviço para o canal legislativo nas sessões ordinárias, extraordinárias e audiências públicas desde o mês de maio deste ano.
Elas promovem uma parceria como intérpretes no meio político que não surgiu em Caxias do Sul. Daiana e Cristiane trabalharam juntas em um período de 2020 na Câmara de Vereadores de São Gabriel, no centro do Estado. Entrosamento que rendeu a indicação por parte de Daiana para o atual trabalho.
Na tevê do legislativo caxiense, Daiana conta como funciona o trabalho, que tem o objetivo de levar para a comunidade surda as informações do que acontece na cidade.
— É no estúdio. Ficamos em uma sala separada, com um croma (tela de fundo neutro) no fundo e com uma tevê onde recebemos o áudio da sessão. Assim, vamos interpretando o que é dito para a língua de sinais e revezando a cada 20 minutos. É assim de segunda a quinta-feira, nas sessões — explica.
Uma rotina que exige muito estudo por parte das intérpretes.
— Exige bastante estudo. Por isso, antes da sessão, lemos a Ordem do Dia (projetos que serão apreciados) e os projetos, para sabermos se tem algum termo que tenhamos que explicar para que o público compreenda. Como estamos já algum tempo, isso já está mais fácil, mas é um desafio, sem dúvida — conta Daiana.
Esses momentos incluem as discussões acaloradas dentro do plenário entre os vereadores, como revela Cristiane.
— O surdo entende o que está acontecendo, então, quando tem essas discussões, a gente não pode deixar de sinalizar nada. Isso dá a dimensão da realidade para o público, ainda mais com o uso das máscaras, o telespectador não está vendo a expressão. Por isso, a importância do intérprete na mediação. É tanta informação que a gente constrói rapidamente o que está sendo dito e precisa dar sentido ao que o político está falando - diz.
Segundo as duas intérpretes, essas discussões levam os vereadores a buscar informações e questionamentos de como foram feitas as ações na tevê. E a reposta se repete, de que tudo o que foi dito acabou sendo sinalizado, inclusive os palavrões.
Os motivos para levar a língua de sinais
Daiana e Cristiane carregam consigo o dom de levar a informação e de inclusão deste público em meio à sociedade, que por muito tempo — e ainda há resquícios — preferiu não dar a importância devida ao surdo. Além deste talento dentro si, as duas tiveram influências especiais para buscar o caminho do estudo e aprimoramento para serem intérpretes da língua de sinais.
Daiana tem formação desde 2014 com inúmeros cursos, do básico ao avançado. Assim como graduação em Pedagogia e diversos cursos na área de interpretação Libras, todos eles realizados na Universidade de Caxias do Sul (UCS). Tudo isso, também partiu de uma boa influência.
— Me formei em 2014 e tive interesse porque trabalhei com uma menina surda e vi a dificuldade de comunicação, que é uma barreira. Ela ensinou alguns sinais e me incentivou a fazer alguns cursos. Então, passei a me interessar pela área e me especializar, resolvi focar nisso e me sinto realizada — lembra.
Já Cristiane convive com o cenário de dificuldade dos surdos desde que nasceu. Seu pai e outros familiares não ouviam. Desde muito nova, sempre foi uma intérprete antes mesmo de buscar a qualificação que atualmente possui.
"A língua de sinais na minha vida é muito presente, porque eu cresci nesse meio familiar. Ser intérprete não é só uma questão profissional, é emocional. Faço o que eu amo em todos os projetos. Agradeço poder proporcionar isso para essa comunidade. Meu pai entendia que ser surdo era algo ruim, não viveu esse novo momento, com menos barreiras. O surdo é um ser humano, acima de qualquer coisa."
CRISTIANE CASARA
Intérprete de Libras
— Tenho proficiência como intérprete de libras. Me formo agora em Letras para qualificar, mas a vivência e muitos cursos foram fundamentais. Quando iniciei, diziam que, por ser filha de surdos, isso facilitava, mas não é verdade. Ser interprete precisa de conhecimento e conviver. Trabalho na universidade, na Surdolimpíadas, ou seja, para aprender, você precisa estar no meio, pois ali você aprende muito. Também força de vontade — ressalta.
Cresce demanda e diversidade de trabalhos
O trabalho como intérpretes de Libras não se resume apenas ao realizado na Câmara de Vereadores. Daiana, Cristiane e as demais colegas habilitadas atuam nas mais diversas áreas, seja dentro de cursos em universidades, profissionalizantes, vídeos institucionais, eventos e até lives musicais, que durante a pandemia mostraram ainda mais o trabalho dos intérpretes.
Para Daiana, essa diversidade de oportunidades de trabalho torna o dia-a-dia das intérpretes ainda mais importante na comunicação.
— Trabalho em vários locais e é muito complicado para o surdo e o ouvinte não se fazerem entender. A gente está em diversas áreas, seja dentro de empresas e vai de um curso de solda até pós-graduação. Por exemplo, no fim de semana, estivemos em um seminário sobre hemofilia, coisa da área da Medicina. É muito diversificado. Precisamos quebrar essa barreira para todos se compreenderem. O que posso afirmar é que o interprete nunca fica entediado — ressalta.
O cotidiano de Cristiane também é intenso e bastante diversificado. Ela que trabalhou no Campeonato Mundial de Handebol de Surdos em 2018 e aguarda ansiosa pela Surdolimpíadas, no ano que vem, em Caxias.
— A Surdolimpíadas é um projeto de projeto de vida, sem dúvida. As pessoas em Caxias abraçaram a causa e entenderam a importância de ser sede desse evento. Vamos ter atletas de mais de 100 países que irão precisar desse apoio para se comunicar e se sentir acolhidos. Eu digo que a Surdolimpíadas será um marco para cidade tal qual a Festa da Uva. E sim, é um novo momento com crescimento de demandas e isso é muito legal — endossa.
Cristiane ainda descreve como é a função de intérprete
— Discrição, honestidade, postura, fidelidade, imparcialidade e conhecimento prévio dos assuntos, isso é intérprete - completa.
Em Bento, agente de trânsito se qualifica em Libras
No dia 21 de setembro, Bento Gonçalves realizou a Semana de Trânsito. E chamou a atenção para Rafael Faccin, que é agente de trânsito há 21 anos e que buscou se capacitar em Libras para atender o público surdo. A atividade ocorreu na Associação dos Surdos e Mudos de Bento Gonçalves (ASBG).
Faccin estuda Libras há aproximadamente cinco meses. Algo desafiador e que partiu de sua própria iniciativa.
— Estudar Libras partiu de um interesse pessoal em aprender. Quando fui convidado pela ASBG para conhecer a instituição, amadureci mais essa ideia de estudar. É um desafio, não tinha esse conhecimento. É uma nova alfabetização e, como tudo que é novo, é difícil — conta.
Ele pretende ser inspiração para os demais agentes buscarem esse aprendizado e conhecimento para atender a população surda e orientá-los sobre questões de trânsito.
— Hoje sou o único que curso Libras e pretendo ser um multiplicador entre meus colegas. Tendo a ideia de fazer a inclusão na grade curricular do agente de trânsito para que se tenha habilidade de leitura e escrita. Com isso, passamos a entender os surdos, nos comunicarmos melhor com eles e termos uma igualdade na abordagem na área de trânsito. Isso fará uma instituição mais forte e os agentes como mais conhecimento no trato melhor com essas pessoas — ressalta.