Há mais de três anos que Simone da Rosa, 46 anos, luta para esclarecer a morte da filha, Barbara Dias Pires, 18, em Caxias do Sul. A jovem foi encontrada sem vida em sua cama no dia 9 de agosto de 2017 e, por um equívoco, o corpo dela foi enterrado com a causa da morte ainda indeterminada. Após o atendimento, o Samu entregou o atestado de óbito com o indicativo de "possivelmente asma". Inconformada e com o desejo de saber o que ou quem tinha matado a sua filha, a mãe buscou a Justiça e conseguiu, duas semanas depois da morte, a exumação do corpo para necropsia, que comprovou que a filha havia sido assassinada. Desde então, Simone busca saber quem matou Barbara. O inquérito policial ainda está em aberto.
No dia da morte da jovem, a mãe e o padrasto foram trabalhar às 6h45min e deixaram Barbara conversando no celular. Simone voltou para casa à tarde. A moradia estava chaveada, como normalmente ficava, e a porta do quarto da filha estava fechada.
— Lembrei que ela tinha avisado que iria sair para buscar serviço, então fui até o quarto para abrir a janela. Quando entrei, ela estava deitada de bruços. Chamei por ela, que não respondeu. Comecei a ficar nervosa porque ela estava com a cabeça no travesseiro. Chamei de novo e, sem resposta, me desesperei. Virei ela, que já estava roxa, gelada e dura — relata a mãe.
Simone iniciou massagem cardíaca e respiração boca a boca na filha. Ela lembra que procurou pelo celular de Barbara para pedir socorro, mas não o encontrou. Então saiu correndo para pedir ajudar de vizinhos, que acionaram o Samu.
— Me tiraram de cima dela e pediram o que tinha acontecido. Eu chorava muito pedindo para que fizessem tudo que fosse necessário. Eles tentaram entubar ela, mas não conseguiram. Liberaram o corpo por volta das 18h30min. Houve o velório e enterramos ela no dia seguinte — lembra Simone, que ainda diz que, no momento do atendimento do Samu informou que a filha tinha asma quando pequena.
A polícia não foi informada da repentina morte da jovem de 18 anos sem histórico de doenças:
— Eu fiquei com aquilo na cabeça: como uma jovem de 18 anos morre assim? Daí lembrei que ela estava com o rosto no travesseiro e parecia que ela tinha se debatido depois que olhei para o braço e a perna dela. Procurei e confirmei que o celular dela tinha desaparecido, como também uma das chaves do portão também havia sumido do chaveiro dela — conta a mãe.
Dois dias após a morte, Simone acionou um advogado e procurou a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam). Em 14 dias, a mãe conseguiu autorização para exumar o corpo da filha:
— Falei que não foi morte natural. Eu não tinha provas, mas meu coração de mãe dizia que algo estava errado. Demorou quase um ano para sair o resultado (oficial) da necropsia, mas, quando saímos de lá (no dia da exumação), o legista já havia falado que parecia asfixia.
O laudo pericial foi feito em 14 de agosto de 2017 e protocolado na Polícia Civil no dia 27 de abril de 2018, segundo apurou a reportagem. A conclusão foi de que Barbara foi asfixiada por meio de uma sufocação indireta, que é quando ocorre a obstrução das passagens de ar (nariz e boca) sem ocorrer pressão do pescoço (por isso a ausência de lesões traumáticas). A suspeita é de que o assassino empurrou o rosto contra o travesseiro.
— São três anos, mas não vou desistir. Não existe crime prefeito, apenas crime mal investigado, que é o meu caso. Só quero que investiguem. Alguma prova irão achar. Levaram o telefone da minha filha, onde está? Com quem ela falou naquele dia? Por onde andou? Só quero justiça. Não vou viver em paz enquanto não tiver justiça pela minha família — desabafa.
Polícia não ter sido informada da morte prejudicou a investigação
A demora para a comunicação do possível assassinato e a falta da perícia no local do crime e da necropsia são alguns dos fatores que dificultam a investigação policial. Na Deam, o caso é tratado como um feminicídio, mas faltam provas.
— A pessoa que fez isso tinha acesso a nossa a casa e conseguiu as chaves porque fez questão de fechar o quarto dela, a casa e o portão. Não foi um assaltante. Não sumiu nada de dentro da minha casa, apenas o celular dela — aponta a mãe.
Segundo a reportagem apurou, um ex-namorado aparece em depoimentos de testemunhas no inquérito policial. Ele também foi ouvido pela Deam, negou a autoria e disse que estava na escola no dia do crime. O que incomoda a mãe é a falta de movimentação da investigação.
— Já pedi várias coisas, mas nunca há resposta. Deixei a cama e tudo que era dela (sem mexer no quarto) até dezembro, tudo disponível para investigação, mas ninguém nunca foi lá. Sempre pedi o que eles precisavam (para investigar). Só que não acontece nada, não tenho retorno. Agora parece que a intenção deles é fechar o caso por falta de prova — reclama Simone.
O advogado da família da vítima, Ivandro Bitencourt Feijó aponta a falta das perícias iniciais para a dificuldade do inquérito policial:
— Não poderia ter sido desfeito o local do crime. Deveria ter sido chamado o 190 e isolado o local do crime. A polícia e a perícia é quem retiram o corpo do local. Foi tudo contaminado e deixou de ser ser feita uma série de investigações. Este é o grande erro. O que emperrou no inquérito é a questão da autoria. Temos a materialidade do homicídio, mas não temos a autoria. Se perdeu um tempo muito grande.
O advogado se baseia também no laudo pericial de 2017, que aponta que "a declaração de óbito não foi corretamente preenchida". No documento também está escrito que "erroneamente, o cadáver foi encaminhado para sepultamento, uma vez que o correto era ser realizado a necropsia e exame de local de crime".
— Se a exumação demorasse mais tempo, se esta mãe não tivesse insistido para desenterrar sua filha, não existiria nem prova de que foi um homicídio. O problema foi este início — argumenta Feijó.
Segundo o advogado, o inquérito policial emperrou na quebra do sigilo telefônico que foi solicitada logo depois pela Polícia Civil e autorizada pela Justiça. O Ministério Público aguarda pela conclusão policial.
— Estamos em 2021 e não temos o laudo do telefone dela: onde estava e que comunicações foram feitas? Foi autorizado pela Justiça, mas se perdeu na burocracia. As respostas que vieram (das companhias telefônicas), vieram incompletas. A necropsia deixa claro que foi uma morte violenta, mas há toda esta perda de tempo na análise das provas. O inquérito não foi concluído ainda e, em 2020, não teve nenhuma movimentação.
Equipe do Samu diz que polícia só é acionada em casos de violência evidente
A Deam ouviu os três profissionais do Samu envolvidos no atendimento de Barbara durante o inquérito policial. A médica, a enfermeira e o motorista da ambulância relataram que não foram encontrados sinais de violência na vítima ou no local da morte.
No depoimento, a médica afirma que encontrou a vítima sem respirar e sem pulsos periféricos. Foram realizadas manobras de ressuscitação e uma tentativa de entubação, que não teve sucesso pela rigidez do maxilar (impossibilidade de abertura da boca). Segundo a médica descreveu, o estado do corpo sugeria que a morte havia ocorrido há mais de duas horas. A profissional ainda relatou à Polícia Civil que a mãe foi questionada sobre possíveis causas que pudessem ajudar a equipe médica a entender o que teria acontecido e recebeu a resposta sobre o histórico de asma.
Após declarar o óbito, a profissional de saúde "refere que sugeriu à mãe que acionasse a perícia, caso desejasse saber a causa mortis, e que naquele momento a mãe não esboçou interesse, pois estava muito abalada com o ocorrido e ainda sem condições de tomar qualquer decisão". Na sequência, o atestado de óbito foi entregue e a mãe orientada a acionar uma funerária. Questionada durante o depoimento, a médica afirmou que "as orientações que recebe do Samu é que só seja acionada a Brigada Militar em casos de morte não natural evidente, sendo que nesse caso não viu sinais óbvios de cena de crime".
O depoimento da enfermeira é semelhante ao da médica sobre o atendimento realizado no dia da morte. Ela confirma que não viu sinais de violência e disse que a mãe estava "chorosa, nervosa e naquele momento sozinha com a filha". Questionada sobre o procedimento adotado pela equipe, a enfermeira respondeu que o protocolo de trabalho do Samu é, em casos de suspeita de morte violenta, acionar a BM, que aciona a Polícia Civil, mas que quem determina esta conduta é o médico. O motorista do Samu na ocasião também relatou não ter percebido nenhum sinal de violência e que a mãe comentou que a vítima tinha asma. Ele reafirmou no depoimento que "quem toma a decisão é o médico, mas que sabe dizer que a polícia é acionada quando existe sinais evidentes de violência".
Diretora do Samu diz que equipe agiu corretamente
Procurado pela reportagem, o Samu de Caxias do Sul explica que o protocolo para acionar a polícia em casos de mortes sem causa esclarecida é a verificação de sinais de violência na vítima ou na cena do crime pela equipe de médicos. A diretora-geral, Carolina Cunha Lima, procurou o prontuário e as gravações feitas pela médica responsável pelo atendimento de Barbara na época, que já não trabalha mais na equipe.
— Na gravação, a médica relata que achou estranha esta morte incomum, mas que não havia nenhum sinal de sangue, arrombamento, trauma ou indício de uso de drogas ou medicação. Nenhum sinal de violência. A médica ofereceu para mãe entrar em contato com a BM e levar para o DML (Departamento Médico Legal), mas a mãe não quis. É o relato do telefone: que a mãe respondeu que não tinha nenhuma desconfiança. Mas, claro, é entendido que ela estava bem abalada com a morte da filha — relata Carolina.
Além do histórico de asma, a mãe também teria relatado à médica sobre uma cardiopatia congênita na família. Como a mãe respondeu que não queria acionar a polícia, a médica deu o atestado por morte de causa não esclarecida e colocou como comorbidade a asma.
— Foi correto o protocolo empregado. Com ausência de sinais de violência, não temos necessidade de acionar o protocolo de acionamento da BM e DML, apesar de ter sido sugerido à mãe, que não aceitou — conclui a diretora do Samu.
Carolina ressalta que o protocolo não é uma "ciência exata" e que há casos em que os médicos do Samu acionam a Brigada Militar mesmo sem detectar sinais de violência. Porém, há ocasiões em que, sem perceber sinais de violência, o DML não aceita o cadáver e aciona novamente o Samu para a entrega do atestado de óbito. Carolina explica que os médicos não têm autoridade de determinar a realização de uma necropsia, o que cabe à Polícia Civil e ao Instituto-Geral de Perícias (IGP).
Deam responde que inquérito é sigiloso
Procurada pela reportagem sobre os três anos da morte de Barbara Dias Pires, a Deam respondeu por meio de e-mail assinado pela delegada Aline Martinelli. Confira na íntegra:
"Informo que o procedimento encontra-se em andamento e é sigiloso, havendo dados que não podem ser fornecidos para não prejudicar a investigação. Não há prazos para trâmites de inquéritos, cada um depende da complexidade.
Ainda restam diligências a serem sanadas, as quais não é possível informar, nos termos da nova lei de abuso de autoridade (suspeitas, procedimentos... ) antes de sua conclusão. Assim que for possível irei informar."